quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Poema da favela bela.





Pode-se dizer que favela é bela?
- Sei lá. Talvez. Depende...
- Depende do quê?
Fala-se que essa tal comunidade
são sub casas em torta geografia,
onde a vida é poesia sem enigma.
Carne crua em versos sem reboco,
exalando sons de feridas abertas,
soando odores de músicas fortes.
Bem, certo é que há gente boa,
honesta e mestiço calor humano.
Mas também não falta ausência
de tudo aquilo do que já se sabe,
enquanto sobra sólida presença
daquilo tudo do que não se quer.
Diante disso não cabem dúvidas,
apenas a resposta: deve ser bela,
pois tem direito a não ser favela!



quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Poema da arte do transbordamento






Tirando os que têm alma de Mineiro,
porque são discretos até na loucura,
desconheço bom poeta totalmente temperado,
pois poesia é transbordamento de sentimento.
Quando o saco enche, os versos vazam fácil,
ácidos como vinagre ou ardidos como pimenta.
Se o coração explode, o poema ecoa longe,
doce, amargo ou salgado,
depende do sabor do beijo,
do abraço, do carinho,
do fel ou das lágrimas,
que derramaram a tinta da pena.
Enfim, na arte do transbordamento,
tudo é tempero e destempero.



            Esse poema foi inspirado em trecho escrito pelo poeta inglês William Wordsworth (1770-1850), in Preface to Lyrical Ballads: "Poetry is the spontaneous overflow of powerful feelings: it takes its origin from emotion recollected in tranquility" (A poesia é o transbordamento espontâneo de sentimentos intensos: tem a sua origem na emoção recordada num estado de tranquilidade).  Apesar dessa última observação, penso que nem sempre a poesia aguarda o tal estado de tranquilidade para se manifestar. Muitas vezes ela irrompe no calor da emoção mesmo!
            Mas é claro que o poema acima é apenas uma visão poética e romântica do processo criativo da poesia, portanto, desprovida de fundamento científico.  Aliás, vários poetas maravilhosos, acredito que Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto*, dentre muitos outros, não se deixavam levar por destempero de momento. Escreviam com equilíbrio e serenidade - "de cabeça quente só se comete crime".
          Para falar a verdade, creio que uma visão, ou situação, não exclui outra. Ou seja, belas poesias podem ser construídas como projetos de arquitetura, como dizia João Cabral de Melo Neto**.  No entanto, acho mais romântico pensar, assim como Wordsworth, que a origem da poesia é o transbordamento do sentimento experimentado ao longo da vida.


(*) “Os poetas que escrevem por escassez de ser, como eu, planejam os livros, têm um vazio a preencher. Os outros transbordam.”

(**) “Para mim a poesia é uma construção, como uma casa. Isso eu aprendi
com Le Corbusier.”


Segunda possível versão

Há tempo em que poesia
é transbordamento de sentimento.
Quando o saco enche, os versos vazam fácil,
ácidos como vinagre ou ardidos como pimenta.
Se o coração explode, o poema ecoa longe,
doce, amargo ou salgado,
depende do sabor do beijo,
do abraço, do carinho,
do fel ou das lágrimas,
que derramaram a tinta da pena.
Mas em outro tempo,
poesia é arquitetura,
bem planejada e executada,
de retrato da realidade
e preenchimento de vazios,
em construção ou reforma,
pessoal ou social.
Ao fim, na arte do transbordamento,
tal qual na do retrato ou preenchimento,
tudo é mistura,
de tempero, destempero
e projeto calculado.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Poema de uma fera interior





Quase todos os dias, luto contra um leão que me habita.
Nunca consigo matá-lo, quando muito o enjaulo por ora.
Maioria das vezes, o carnívoro me domina e me devora.
Nessa hora, a dor que sinto vem da carne alheia que grita.

As presas reagem, defendem-se, causam-me dor também!
Elas, eu, e a fera interior: guerra imaginária - minha derrota.
Será que um dia, nessa selva mental, encontrarei segura rota,
por onde caminhe, sem que o felino me lance contra alguém?

Acredito que a vida seja uma sinuosa estrada experimental,
mas a experiência de embates, por mim criados, já me basta.
O que fazer? O jeito é achar modo de vitimar o íntimo animal.

Mas a besta não morre. Sem efeito as armas, o adestramento.
Sigo em frente, sentindo o hálito do faminto que me espreita.
Ensaio me reinventar, dando ao bicho poesia como alimento.