domingo, 15 de dezembro de 2013

Poema do Rio de chuva



A vida é rio que passa
enquanto rio na vida,
por onde vivo e canto
com ou sem chuva.

Rio, canto onde vivo,
deságua vivo no mar
o canto de cada vida,
e a chuva.

E as vidas desse Rio
nascem, crescem
e sobrevivem ao rio...
de chuva.



domingo, 17 de novembro de 2013

Poema dos farrapos



Um farrapo coisa surge ante o vidro.
O coração oposto, de medo, ressalta
ideias que por burrice a vida assalta,
petrificando na boca lagos de anidro.

E o farrapo carne descerra o punho,
expondo palmo de armado concreto
donde vazio opulento ergue-se ereto,
atormentando rico reverso rascunho.

Imagem incômoda do farrapo gente
impele corpo avesso avançar o sinal.
Crê que se libertar daquilo é normal.
Mas já não pode mais: algo pressente.

É sim o sorriso cru do homem farrapo
descongelando luzes no farrapo outro.




quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Poema da favela bela.





Pode-se dizer que favela é bela?
- Sei lá. Talvez. Depende...
- Depende do quê?
Fala-se que essa tal comunidade
são sub casas em torta geografia,
onde a vida é poesia sem enigma.
Carne crua em versos sem reboco,
exalando sons de feridas abertas,
soando odores de músicas fortes.
Bem, certo é que há gente boa,
honesta e mestiço calor humano.
Mas também não falta ausência
de tudo aquilo do que já se sabe,
enquanto sobra sólida presença
daquilo tudo do que não se quer.
Diante disso não cabem dúvidas,
apenas a resposta: deve ser bela,
pois tem direito a não ser favela!



quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Poema da arte do transbordamento






Tirando os que têm alma de Mineiro,
porque são discretos até na loucura,
desconheço bom poeta totalmente temperado,
pois poesia é transbordamento de sentimento.
Quando o saco enche, os versos vazam fácil,
ácidos como vinagre ou ardidos como pimenta.
Se o coração explode, o poema ecoa longe,
doce, amargo ou salgado,
depende do sabor do beijo,
do abraço, do carinho,
do fel ou das lágrimas,
que derramaram a tinta da pena.
Enfim, na arte do transbordamento,
tudo é tempero e destempero.



            Esse poema foi inspirado em trecho escrito pelo poeta inglês William Wordsworth (1770-1850), in Preface to Lyrical Ballads: "Poetry is the spontaneous overflow of powerful feelings: it takes its origin from emotion recollected in tranquility" (A poesia é o transbordamento espontâneo de sentimentos intensos: tem a sua origem na emoção recordada num estado de tranquilidade).  Apesar dessa última observação, penso que nem sempre a poesia aguarda o tal estado de tranquilidade para se manifestar. Muitas vezes ela irrompe no calor da emoção mesmo!
            Mas é claro que o poema acima é apenas uma visão poética e romântica do processo criativo da poesia, portanto, desprovida de fundamento científico.  Aliás, vários poetas maravilhosos, acredito que Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto*, dentre muitos outros, não se deixavam levar por destempero de momento. Escreviam com equilíbrio e serenidade - "de cabeça quente só se comete crime".
          Para falar a verdade, creio que uma visão, ou situação, não exclui outra. Ou seja, belas poesias podem ser construídas como projetos de arquitetura, como dizia João Cabral de Melo Neto**.  No entanto, acho mais romântico pensar, assim como Wordsworth, que a origem da poesia é o transbordamento do sentimento experimentado ao longo da vida.


(*) “Os poetas que escrevem por escassez de ser, como eu, planejam os livros, têm um vazio a preencher. Os outros transbordam.”

(**) “Para mim a poesia é uma construção, como uma casa. Isso eu aprendi
com Le Corbusier.”


Segunda possível versão

Há tempo em que poesia
é transbordamento de sentimento.
Quando o saco enche, os versos vazam fácil,
ácidos como vinagre ou ardidos como pimenta.
Se o coração explode, o poema ecoa longe,
doce, amargo ou salgado,
depende do sabor do beijo,
do abraço, do carinho,
do fel ou das lágrimas,
que derramaram a tinta da pena.
Mas em outro tempo,
poesia é arquitetura,
bem planejada e executada,
de retrato da realidade
e preenchimento de vazios,
em construção ou reforma,
pessoal ou social.
Ao fim, na arte do transbordamento,
tal qual na do retrato ou preenchimento,
tudo é mistura,
de tempero, destempero
e projeto calculado.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Poema de uma fera interior





Quase todos os dias, luto contra um leão que me habita.
Nunca consigo matá-lo, quando muito o enjaulo por ora.
Maioria das vezes, o carnívoro me domina e me devora.
Nessa hora, a dor que sinto vem da carne alheia que grita.

As presas reagem, defendem-se, causam-me dor também!
Elas, eu, e a fera interior: guerra imaginária - minha derrota.
Será que um dia, nessa selva mental, encontrarei segura rota,
por onde caminhe, sem que o felino me lance contra alguém?

Acredito que a vida seja uma sinuosa estrada experimental,
mas a experiência de embates, por mim criados, já me basta.
O que fazer? O jeito é achar modo de vitimar o íntimo animal.

Mas a besta não morre. Sem efeito as armas, o adestramento.
Sigo em frente, sentindo o hálito do faminto que me espreita.
Ensaio me reinventar, dando ao bicho poesia como alimento.






quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Poema da arquitetura transparente

Foto de Christian Barroso in:



Quando as paredes opacas do mundo caem,
e a arquitetura da vida se faz transparente,
a crosta recoberta de terra logo se acanha,
e a cidade concreta, em tudo fragmentada,
permeada por estruturas ilógicas, obscuras,
complexa em suas retas, curvas, distâncias,
esferas, cores, crenças e sons de suas feras,
torna-se simples brinquedo pueril e volátil
de lata, plástico, isopor, papel e barbante
aos pés de uma suprema Criança, que sabe
que a urbana é pequena, o país é pequeno,
o planeta é pequeno, o universo um sopro.
E a infanta etérea olha, caminha e brinca
de ser humana na metrópole, que de si criou.





sábado, 14 de setembro de 2013

O sumiço do pato (pequeno conto familiar)

         



         Ele passou a semana inteira louco de vontade de escrever algo que não fosse jurídico. Não desgosta da redação técnica da advocacia; ao contrário, gosta bastante, sobretudo da liberdade e das possibilidades da argumentação baseada na lógica do razoável.  Mas não era disso que estava desejoso; queria gritar e pôr para fora alguma coisa entalada em sua alma.

         A manhã de sábado chegou e finalmente poderia dar asas àquele impulso.  Há quem diga que essa sua vontade é existencial.  Bem, como simples narrador deste conto não sei, mas quem o diz o conhece, tem suas razões, portanto deve estar certo.

         Independente da sua natureza, ele despertou ainda com aquele desejo.  Foi à cozinha, preparou mamadeiras para seus dois filhos, fez o café e acordou a esposa.  Da varanda do apartamento viu o dia nublado, chuvoso, e concluiu: nada de clube, piscina no play ou pracinha; acho que vai dar para ficar em casa escrevendo, se as crianças deixarem!

         Depois desse preâmbulo matinal, ligou o computador, encarou por alguns minutos a folha alva e pensou: uma página em branco é a maior obra da literatura universal. Nela há tudo, basta imaginar. Existem romances, novelas, contos, fábulas, crônicas, poemas, biografias, ficções, o passado, o presente, o futuro e tudo ao mesmo tempo.

         Mas apesar da filosofia de lugar comum, olhou, olhou, olhou e não encontrou história alguma naquela tela carente de tintas. Nada de frases; sequer tropeçou em uma mísera letra.  Ficou ali pouco mais de uma hora e nada. Desligou o computador e foi para a varanda.  Enquanto o olhar vagueava por onde ele nem sabia, sua esposa lhe perguntou:

         - Amor, vamos almoçar em um restaurante ou você quer que eu faça comida?

         - Acho que não estou com vontade de sair.  O que você prefere?

            - Tanto faz.

         - Então vamos comer aqui mesmo.  Já almoço em restaurante a semana toda...

         - Tudo bem. Mas você pode ir ao mercado comprar alguma coisa?

         - Posso sim. Quer massa?

         - Hunhum...

         No mercado, pegou dois pacotes de capeletti, uma caixa de molho de tomate, um saquinho de queijo ralado; pôs tudo na cesta e foi à seção de bebidas importadas.  Escolheu um carménère chileno; pagou as compras e voltou para casa.

         Assim que terminou o almoço, colocou os pratos na pia e deixou a garrafa vazia na lixeira do corredor do andar, para não correr o risco de as crianças a quebrarem.  Quando retornou, viu a esposa e a filha se arrumando:

         - Ué, vocês vão sair?

         - Vamos ao shopping trocar essas roupinhas que ela ganhou. Você pode ficar com o Arthur?

         - Posso, mas, por favor, não demorem muito...

         - No final da tarde a gente volta. Beijo!

         Mãe e filha saíram e ele falou ao filho:

         - Meu amigão, eu sei que você só tem um ano e onze meses, mas vê se colabora. Tá?!

         - Qué vê Mickey, papai!

         O pai ligou o DVD e se sentou no sofá, enquanto o filho se ajeitou no chão mesmo.  Em minutos os dois já estavam deitados, cada um em seu lugar, aquele com o olhar pesado de vinho, o outro rindo solto.  Entre pestanejadas demoradas, o pai começou a refletir: passei a semana inteira com vontade, mas agora não sei sobre o que escrever.  Acho que vou tentar um poema de conflito entre o corpo e a alma. Melhor não, mês passado fiz um inspirado em Cruz e Souza e minha mãe perguntou a meu irmão se eu estava pensando em me matar.

         Descartou a ideia, abriu os olhos e viu o Arthur sentado ali, em frente ao sofá.  Cochilou um pouco e imaginou escrever uma crônica acerca da liberdade de orientação sexual e dos novos arranjos familiares. Logo desistiu do assunto, afinal de contas não possuía conhecimento suficiente.

         Uns tantos minutos após, abriu os olhos apreensivo, mas logo avistou o menino em pé ao lado do sofá.  Relaxou e, de olhos fechados, se viu escrevendo um conto a respeito de um homem casado, pai de filhos pequenos, possivelmente atravessando a chamada crise dos quarenta.  Gostou do tema e pensou logo em uma frase: ele ainda não é velho, longe disso, mas por outro lado já não é tão novo quanto gostaria.

         No entanto, percebeu que além disso teria que falar sobre o desgaste natural da vida em comum, em razão da rotina, dos filhos, do trabalho e de muitas outras coisas por que passam casais da classe média brasileira nessa fase da vida.  Compreendeu, também, que o tema poderia ser escasso de passagens interessantes, capazes de prender a atenção do leitor; ou então, levar a discussões interiores conflituosas e áridas demais.  A possibilidade de a esposa ler e não acreditar no caráter meramente ficcional do texto o desestimulou, porque esse fato poderia suscitar aborrecimento conjugal.

         Durante o pensamento, ou sonho – nem ele sabia ao certo -, ouviu um barulho e levantou-se sobressaltado, chamando em voz alta:

         - Arthur, Arthur, onde você está? Venha aqui.

         Imediatamente ouviu os passinhos apressados do garoto se aproximando, vindo pelo corredor do apartamento.  Quando chegou, o pai o viu com os cabelos molhados para trás, e as mangas compridas da camisa ensopadas até os cotovelos.  A barriga também estava encharcada.  Mas o que mais o intrigou foi uma coisa verde empastada pelo rosto.  Parecia um creme feito de criptonita.

         O pai foi até o banheiro e encontrou a tampa do vaso levantada e o chão molhado.  Por dentro do sanitário a louça estava suja daquela substância cor de clorofila.  Ainda meio atordoado pelo vinho ele se perguntou: caramba, o que é isso?  Logo em seguida ouviu a porta da sala se abrindo e pensou: graças a Deus, elas chegaram.

         Diante da cena, a mãe perguntou:

         - O que houve? Você estava dormindo?!

         - Acho que ele se lavou no vaso, mas não estou encontrando o sabonete.

         - Sabonete que nada; isso é Pato Purific, pedra sanitária adesiva. Será que ele comeu?

         - Não sei, mas creio que não. Se ele pôs na boca deve ter cuspido, porque o gosto deve ser forte, horrível.  Além disso, ele não está vomitando nem nada. Está é rindo. Olha só a cara de safado...

sábado, 7 de setembro de 2013

Poema dos potros negros





Nosso prado, pasto farto em tempo árido
de cabeças e patas de multiforme tropa,
onde para poucos, tudo com o que se topa
se arranca, leva-se com desejo ávido.

Aves de rapina conduzem esse tropel,
ora em corrida sem rumo desembestada,
ora em marcha apática, lenta, estagnada,
na aparente carência d’algum bravo corcel.

Mas se ele surge, é pro bem e pro mal.
Expoente único, há muito já anacrônico,
melhor não vir. Dissolva-se, pedra de sal!

No lugar, bando de potros negros surgiu
- gêmeos, iguais, bloco selvagem sem rosto -
do coletivo ventre duma potra que os pariu.




segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Poema do divórcio de mim mesmo



Se minh'alma se cansar desse corpo pequeno
e nesse corpo não couber mais minh'alma larga;
se meu corpo se libertar dessa alma amarga
e essa alma se livrar desse corpo veneno;
se ambos acabarem com esse caso óbvio
e juntos apagarem essa luz antiga,
sem mágoa, briga, fel ou intriga,
finda-se de vez a história Otavio.
Mas tal divórcio de mim mesmo
só haverá quando Deus quiser;
enquanto isso, corpo e alma
vão se amando como dá.
Aliás, minh'alma o corpo quer
e o corpo a alma muito mais.

Poema para Aninha (reconstruído)


Pequena do rosto bonito,
que tens o sorriso largo,
me dá um abraço infinito
 e jamais me deixes amargo.

Por ti sou rubro e feliz,
pulso vivo e forte,
repleto de luz e sorte,
e minha batida te diz:

este coração paterno
até o eterno te ama!

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Os sentidos da vida (pequeno conto urbano)

X
     

       
            Naquela manhã o despertador ligou sintonizado em uma rádio de música clássica, em que tocava a Primavera de Vivaldi. Cortina fechada, luz apagada, sem abrir os olhos Paulo se levantou como se estivesse acordando de um longo inverno.  A melodia o lembrou de que adorava os sons da vida e lhe deu a certeza de que seria um dia lindo.

            Tomou banho, se arrumou, fez café, colocou na mochila a muda de roupa para a musculação após o expediente, o celular, alguns outros objetos e partiu para o trabalho.

            Alguns quarteirões perto dali ela abriu os olhos. Desde criança amava ser acordada daquele jeito: o sol acariciando seu rosto e lhe trazendo logo cedo as cores do mundo.

            No ônibus, Paulo se sentou no lugar de sempre, junto à janela. O motorista puxou papo:

            - E aí Paulo, tudo bem?

            - Tudo! E contigo Luiz?

            - Também, mas o que me mata é esse trânsito murrinha.

            - Pra mim tá ótimo, assim vou curtindo a paisagem - os dois riram e seguiram em silêncio.

            Dois pontos adiante ela entrou, caminhou até o banco próximo ao motorista e se sentou ao lado de Paulo. Ele virou seu rosto em direção a ela. A moça fixou os olhos nos lábios dele, achou-os lindos e manteve o olhar. O rapaz não se conteve e disse baixinho: - nossa, que perfume! A moça gostou do que viu, olhou para baixo e discretamente sorriu.

            Alguns minutos depois ela percebeu Paulo girando a cabeça em direção à janela. Examinou-o de cima a baixo. Cabelo desarrumado mas bonito, ombros largos e braços fortes, óculos de sol fora de moda e meias claras com calça escura; nada que uma garota de bom gosto não pudesse resolver. Paulo se virou novamente para frente, e ela, por reflexo, disfarçou.  Embora tenha sido bem discreta, de alguma forma ele pressentiu. Desconhece a razão, mas sempre sabe quando está sendo observado. Uma vez a vó lhe disse que ele tinha os sentidos apurados.

            Ainda provocado por aquele cheiro de mulher, Paulo roçou levemente seu braço no dela, aguardando, no mínimo, um afastamento. Ao contrário, ela manteve o braço e encostou sua coxa na dele. Por não esperar por isso, seu coração de marinheiro de primeira viagem disparou. Ele respirou fundo e tentou parecer calmo. A garota colocou a mão levemente sobre a perna dele.

            Apesar de ser um sujeito confiante, por alguns segundos se sentiu menino, meio perdido diante da novidade. Parecia que todos os seus sentidos tinham fugido de medo, apenas o tato permanecia ali. Mesmo inseguro, pôs sua mão sobre a dela. Achou-a delicada, com pele suave e bem jovem. Continuou acariciando a mão direita da menina.  Não havia aliança de noivado, apenas um anel em forma de flor. Por certo também não haveria aliança na esquerda - deduziu.  Deslizou os dedos até o antebraço e o encontrou arrepiado. De repente a mão e a perna de Paulo ficaram vazias. Ele cruzou os braços à frente de seu tronco e permaneceu em silêncio, quieto.

            Na segunda parada ela colocou algo no bolso da camisa dele, levantou-se e desceu. Curioso ele foi conferir. Era um pequeno pedaço de papel. Desdobrou-o e, com as pontas do polegar e do indicador em pinça, enxergou no centro um recorte em forma de coração. Ele ficou de pé, aproximou-se do motorista e perguntou:

            - Luiz, você viu onde aquela menina saltou?

            - No Instituto de Surdos.

            - Você a conhece?

            - Sim, garota legal. Pega este ônibus há anos. Era aluna, agora é professora.

            - Que bom, pertinho do meu trabalho. Vê pra mim se tem algo escrito aqui.

            - Tem sim: "quero ser a luz da tua vida. Te encontro aqui amanhã no mesmo horário, com o mesmo perfume e o mesmo anel. Beijos, Carlinha". Aí cara, se deu bem, maior gata!

            - Valeu... Já é o meu ponto?

            - É. Pode descer, mas cuidado que eu fiquei uns dois passos longe do meio fio.

            - Tchau, até amanhã!
      

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Homenagem ao meu Velho lobo do mar


     Do tempo em que minhas mãos mal alcançavam a maçaneta, lembro-me bem da imagem dele à porta da sala de estar, com a cara fechada, vestindo um terno escuro. Mas gostava mesmo era daquela farda branca com dourados nos ombros contrastando com o bigode grosso ainda bem negro e os olhos sempre verdes.


     Ainda parece ontem, quando, em seu colo, senti pela primeira vez cheiro que pensava ser de mar. Hoje sei que era uma mistura de fumaça de óleo diesel com ar-condicionado, a qual impregnava o seu uniforme cinza de serviço.

     Aliás, também me lembro como se fosse hoje o dia em que me levou pra conhecer o seu local de trabalho. Atravessamos uma pontezinha de madeira que balançava muito. Em seguida passamos por uma porta estranha. Era de ferro, arredondada e no meio havia uma espécie de volante que girava para um lado e para o outro, para fechar e abrir. Depois descemos e subimos várias escadas esquisitas, também de ferro, estreitas, bem estreitas.

     Lá tudo era cinza e exalava aquele cheiro que eu pensava ser de mar. Quer dizer, havia sim algumas coisas douradas, brilhantes, sobre as quais um rapaz com um gorrinho branco engraçado na cabeça me falou: - Isso são balas de canhão! Perguntei ao meu pai onde estávamos. Ele me disse: - Em um contra-torpedeiro da Marinha do Brasil.

     Finalmente almoçamos: arroz, batatas fritas e bife à milanesa com algum refresco cujo sabor já não me lembro. À tarde voltamos para casa. Achei aquele dia fantástico.


PS: a foto de família foi tirada em 1975, acredito que cerca de 2 a 3 anos depois da visita que fiz com meu pai ao CT Piauí - D 31. Da esquerda para a direita: Ricardo, minha mãe, meu pai e eu.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Poema Celulares

Toca, toca, toca.
Mexe, remexe, tira da bolsa.
Olha, sorri, atende.
Fala, fala, fala.
Alto, médio, baixinho.
Percebe, disfarça, mão no cabelo,
joga pra trás, vira de lado.
Interroga, afirma, exclama.
Beijo, tchau, desliga.
Enfia na bolsa.
Com quem será...?
O que será...?
Sei lá, assunto dela.
- Ei, fofoqueiro!
- Que nada! Observador da natureza humana.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Reflexo instantâneo



Como reflexo instantâneo, vejo flores em um pulso e estrelas no verso pelo reverso do espelho.

Surpreendo-me e, conduzido cativo, imagino a vida em metáfora, ardendo igual à brasa de um cigarro. Por trás da fumaça, percebo desfocado um sorriso sedutor, reluzindo prata.

Assustado, olho para o lado e encontro Clarice Lispector na mesinha de cabeceira, regendo abstrata as palavras com a sua caneta-presente.

Redescubro o que já sei, que de lá ela dispõe como ninguém cada letra em um mosaico de ideias, imagens e lembranças escritas.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Poema da noite e do dia


Hoje quero dormir cedo,
acordar tarde,
estender a noite,
encurtar o dia,
porque no breu encontro
os desencontros da luz.

Amanhã quero acordar cedo,
me deitar tarde,
prolongar o dia,
reduzir a noite,
porque na luz desvendo
o obscuro do breu.

Depois de amanhã,
viver a vida sonhada,
sonhar o sonho vivido.

A vitória da derrota (pequeno conto de advogado)

                      

              Assim que o oficial de justiça lhe entregou o mandado, José Augusto o examinou e leu a cópia da petição inicial que o acompanhava, para compreender melhor o caso e as circunstâncias que levaram o juiz a proferir aquela decisão.  Telefonou para a secretária do diretor do hospital particular para o qual trabalhava e lhe pediu para marcar uma reunião ainda naquela tarde.  Explicou-lhe se tratar de uma ordem judicial que precisava ser cumprida em quarenta e oito horas.  Ela lhe disse que falaria com o chefe e que lhe retornaria em breve.

            Enquanto aguardava resposta, viu surgir em sua mente a história daquela criança como se fosse um filme.  Imaginou a dor que a mãe sentiu quando o médico lhe contara no dia da primeira ultrassonografia que sua filha era portadora de uma grave síndrome e que provavelmente não nasceria viva ou, se nascesse, certamente não passaria do primeiro ano de vida.

            Nesse momento a secretária ligou e lhe avisou que seria recebido em duas horas.  O filme prosseguiu e viu em detalhes o drama de uma gravidez árdua, um parto complicado e a luta incansável pela vida sendo travada e vencida pela pequena a cada crise convulsiva, a cada parada cardiorrespiratória, a cada dia, ou melhor, a cada minuto.

            Após um mês de internação hospitalar em UTI neonatal, mesmo não havendo previsão contratual, a operadora do plano de saúde ofereceu a sua mãe uma unidade de tratamento intensivo domiciliar.  A empresa não fez esse acordo por espírito humanitário, mas sim porque essa solução lhe era financeiramente mais vantajosa.  O médico da menina autorizou e a proposta foi aceita.  Finalmente a neném chegava ao lar.

            Olhou o relógio, já estava na hora de subir ao andar da diretoria.  Assim que entrou, o diretor lhe sorriu, fez um gesto para que se sentasse e lhe perguntou:

            - Então, doutor José Augusto, o que houve?

            Em resposta, o advogado lhe entregou o mandado. O médico o leu rapidamente em silêncio, refletiu e indagou:

            - Veja bem doutor, esse serviço foi assumido pela operadora de planos de saúde, no entanto nós já não pertencemos mais a sua rede credenciada. Por que o juiz determinou que o nosso hospital mantenha em funcionamento esse serviço de home care? Nós não temos obrigação contratual alguma nesse caso.

            O advogado explicou que aquela operadora estava praticamente falida, não pagava suas dívidas há meses e que seus sócios estavam foragidos em razão de terem sido denunciados pelo ministério público por crimes financeiros.  Salientou que aqueles fatos fizeram com que a empresa subcontratada pela operadora para manter o home care funcionando informasse à mãe da criança que cessaria os serviços por falta de pagamento em uma semana.

            José Augusto esclareceu ainda que o advogado da família concluiu que seria mais eficaz ajuizar uma ação diretamente contra um hospital credenciado do que processar o plano de saúde, até porque ele não sabia, ou fingiu não saber, que no momento do ajuizamento da ação o hospital já havia se descredenciado. Disse ainda que o juiz, por também não saber dessa particularidade, concordou e concedeu a liminar, determinando que o hospital adotasse todas as medidas necessárias à manutenção do serviço e à preservação da vida da paciente em quarenta e oito horas.

            Ao término da narrativa, o diretor impacientemente se ajeitou em sua cadeira, olhou pela janela por alguns segundos e falou sem hesitar:

            - Mas eu não concordo com essa decisão, ela é flagrantemente equivocada e o senhor sabe disso bem melhor do que eu. Nosso hospital não pertence mais à rede credenciada daquela operadora. Se o plano de saúde quebrou, o paciente deve contratar outro ou buscar assistência médica na rede pública. Doutor José, eu não vou cumprir essa ordem nem que um raio caia na minha cabeça!

            - Bem, doutor, tecnicamente o senhor pode estar certo, contudo existe uma decisão judicial e se não a cumprir responderá por crime de desobediência. Há também o risco de morte para a criança e, se isso acontecer, o senhor será acusado de homicídio.

            - Doutor José, não vou cumprir a ordem, não quero que se forme precedente nesse sentido. Essa decisão é absurda. Você é o chefe do nosso departamento jurídico, recorra e arrume um jeito de derrubar essa liminar. Antes de ser empresário eu sou médico e não me impressiono com a morte. Se essa menina morrer, paciência, todo mundo morre um dia, e pelo quadro lhe digo que ela não viverá muito. Por favor, seja profissional, não se permita sensibilizar pelo estado da menina.  Aja rápido para que as coisas não se compliquem.

            José Augusto sentiu um gosto amargo ao ouvir o médico lhe dizer que não se importava com a morte de uma criança. Porém a acusação de estar deixando o sentimento atrapalhar o profissionalismo o perturbou muito mais. Um desconforto duplo tomou conta de si. Pouco na consciência, muito no orgulho.

            Terminada a reunião, o advogado voltou a sua sala para definir uma estratégia de atuação processual. Considerou que naquelas circunstâncias seria muito difícil conseguir convencer um desembargador a suspender a decisão.  Estava claro que seria necessário criar uma alternativa, a qual viabilizasse a cassação da ordem sem que a criança ficasse sob risco de morte.  De qualquer modo, ele precisava tentar suspendê-la antes de se esgotar o prazo.

            Durante o final daquela tarde, ele fez uma petição requerendo ao juiz a reconsideração da sua liminar ou, caso não a reconsiderasse, que mandasse citar o Estado para ingressar como réu na ação, sob a alegação de que, independentemente da responsabilidade das empresas privadas, o Poder Público também tinha o dever constitucional de prestar o serviço de saúde indispensável à preservação da vida daquela menina.

            No dia seguinte, José Augusto foi ao Fórum logo na primeira hora do expediente.  O magistrado o recebeu e o ouviu atentamente. Concluída a explanação sobre o caso, o juiz elogiou a sua retórica e lhe disse que do ponto de vista técnico talvez até estivesse com a razão, mas que naquele momento ele ainda não estava julgando o mérito da ação, e que o objetivo da liminar era preservar a vida de um ser humano. Mostrou ao advogado do hospital que havia nos autos do processo uma cópia do contrato do plano de saúde indicando que, pelo menos no momento em que fora assinado, o hospital pertencia a sua rede credenciada. Havia também um panfleto do hospital informando que atendia aquele convênio. O juiz perguntou a José Augusto se ele sabia se os consumidores do plano de saúde haviam sido comunicados da desvinculação do hospital. José Augusto acenou negativamente com a cabeça.

            Diante disso, o magistrado afirmou que não iria reconsiderar a ordem e, em seguida, discursou longamente sobre a ganância dos empresários da medicina privada, bem como a respeito da precariedade dos serviços públicos e acerca do descaso das autoridades na área da saúde.  Finalmente, e de maneira inusitada, sentenciou ao advogado que se ele recorresse, conseguisse suspender a liminar e a criança morresse, que ele iria para o inferno, porque mais importante do que a lei dos homens seria a lei de Deus. Em contrapartida, deferiu o pedido de citação do Estado e mandou intimar o Secretário de Saúde com urgência para cumprir a decisão em conjunto com o hospital particular. José Augusto sorriu, agradeceu ironicamente o sermão e retornou a sua sala satisfeito.

            Ao chegar, redigiu um recurso requerendo ao Tribunal a suspensão da determinação em relação ao hospital e foi rapidamente protocolizá-lo.  Assim que o agravo foi distribuído a um desembargador, dirigiu-se a seu gabinete, explicou-lhe as particularidades do caso, enfatizando a ordem ter sido estendida à Secretaria Estadual de Saúde. Ao término, a liminar foi suspensa em relação a seu cliente, mas mantida quanto ao governo.

            Revertida a situação e preservada a sua reputação profissional, José Augusto designou um outro advogado para o caso, parou de acompanhá-lo pessoalmente e ficou sabendo que cerca de dois meses depois a criança veio a falecer, como diagnosticara o médico empresário.  Até hoje ele não sabe dizer ao certo a causa do óbito, assim como se aquela medida fora cumprida pela rede pública de saúde, nem se isso influenciou na morte da neném. Sabe apenas que fez o que julgava que qualquer advogado faria em seu lugar. Não se sente culpado, mas, por via das dúvidas, pede a Deus todas as noites que não o mande para o quinto dos infernos, argumentando com o Senhor em suas preces que, afinal, lá já há advogados demais.
 


quinta-feira, 25 de julho de 2013

Sensata loucura (pensamento vago e mutável)


       
          Santo desequilibrado, diabo ponderado, homem comum em um lugar intermediário entre o céu e o inferno. A loucura é o meu bem, o mal a lucidez.
           Enquanto aquela revela a essência descalibrada mas sincera que me habita, com a outra dissimulo e transformo desatino em prumo, levando com grande naturalidade a sociedade a crer que me comporto com sensatez.
           Anjo caído, demônio redimido, pessoa vulgar em um mundo planetário entre o sol e as estrelas. A demência e o juízo se completam e temperam em mim uma agridoce estupidez.
             E a mistura disso tudo traduz minha mente, que mente quando admite as burrices e os pecados, mas diz que não se arrepende. Se arrepende sim, por cada carne ferida, alheia e própria, chora baixinho e pede perdão de uma só vez.

Sensata loucura (versão quase original)

         

         Anjo desequilibrado, demônio sensato, homem comum no mundo intermediário entre o céu e o inferno. A loucura é o meu bem, a sensatez o meu mal.
          Enquanto aquela revela a essência da minha alma pequena, a outra dissimula a grande banalidade daquilo que a sociedade chama de minha lucidez.
          Anjo caído, demônio redimido, pessoa vulgar em um mundo planetário entre o sol e as estrelas. A demência e o juízo se completam e temperam a minha estupidez.
          E a mistura disso tudo traduz minha mente, que mente quando admite os pecados, mas diz que não se arrepende. Se arrepende sim, chora baixinho e pede perdão de uma só vez.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Poema de corpo e vida

Na manhã a brasa aquece
a trova que a vida canta.
Orgulhoso o corpo cresce,
enquanto o tempo encanta.

Ferve a chama da tarde
o soneto do tempo louco.
Inquieta a vida arde,
tornando o corpo pouco.

À noite o fogo acalma
o poema livre da vida.
Pois corpo agora é alma,
na eternidade provida.

Corpo no tempo some.
Vida nem fogo consome.



Obs.: antes que algum poeta de verdade me critique, explico que apenas brinquei de organizar palavras em pseuda forma de soneto inglês, sem preocupação com regras de métrica, rima e ritmo.


segunda-feira, 8 de julho de 2013

British Rock

     
   
         Acho o Rock inglês absolutamente fantástico, qualquer que seja o estilo, e não acredito ser possível dizer entre The Beatles, Rolling Stones, The Who, Led Zeppelin, Sex Pistols, Queen, Pink Floyd e outros quem é o melhor, até porque os estilos não são idênticos.

      No entanto, para mim os Beatles sempre serão a minha assumida preferência, não pela qualidade técnica do som, mas por motivo puramente subjetivo. Acho que esse carinho se dá porque ela foi a primeira banda de rock inglês que descobri. Para dizer a verdade, até 1983 era a única cuja obra eu realmente conhecia. Escutava músicas de outros grupos ingleses, americanos ou de outros países no rádio, mas na maioria das vezes sequer sabia de quem eram. 

    Naquele ano, apesar de a preferência não sofrer abalo, meus parâmetros musicais se transformaram. Um colega me emprestou um álbum duplo de vinil chamado The Wall e conheci, então aos quatorze anos de idade, o rock progressivo do Pink Floyd. Meu irmão, com treze, também ouviu e adorou. Na mesma semana ele comprou The Dark Side of the Moon, Wish You Were Here e Aton Heart Mother. Depois disso, conheci muitas outras bandas inglesas e de várias nacionalidades, como a canadense Rush.

      Nunca mais parei de ouvir Pink Floyd e uma música especialmente vem me acompanhando por esses 30 anos como se tivesse sido tatuada em minha alma e se tornado parte do meu próprio ser, Wish you were here.  Não sei explicar a razão, a não ser o fato de gostar da letra, da melodia e do refinado instrumental.





sexta-feira, 5 de julho de 2013

Eu, Arthur e o Caviar

     
     
       Senti um leve toque em meu rosto. Abri os olhos e não vi nada, estava tudo escuro. Voltei a dormir. Em seguida, veio um apertão no nariz acompanhado de uma vozinha dizendo: - Vamo papai! Vamo papai! Abri novamente os olhos e, aos poucos, consegui ver uma criaturinha minúscula com chupeta na boca e cabelos loiros embaralhados tentando sacudir a minha cabeça. - Vamos aonde, Arthur? Perguntei. - Sala, Mickey, mamá papai!

      Olhei o relógio e ainda eram três e meia da madruga. Peguei o moleque no colo e fui para a sala. Liguei a TV, coloquei um DVD e fui para a cozinha fazer mamadeira. Fiz o mamá e abri a geladeira procurando algo para eu comer. De início, nada me entusiasmou, mas um potinho me chamou a atenção. Era caviar legítimo trazido na véspera pelo meu cunhado de uma viagem à Rússia. Pensei: - A esta hora este troço vai embrulhar meu estômago. Ignorei o pensamento.

       Peguei a mamadeira, as ovas de esturjão, um saco de torradas e fui para a sala. Ajeitei Arthur em meu colo e lhe dei a mamadeira. Fiquei observando meu bichinho bebendo aquele leite puro e me lembrei de que quando criança adorava também. Hoje não suporto. Atualmente, leite só com muito Toddy.

      Após terminar, satisfeito se esparramou no sofá ao meu lado. Aproveitei e abri o pote de caviar. Com uma pequena colher, coloquei uma porção sobre uma torrada. Cheiro sutil, sabor levemente salgado, textura gelatinosa mas firme. Estava delicioso e meu estômago aceitou bem! Na hora me lembrei de que até a adolescência repudiava a ideia de comer ovas ou peixe cru. Contudo, recordei-me de que um dia meu pai trouxe caviar de uma viagem e eu experimentei, estranhei no início, mas depois gostei. Hoje gosto de caviar e adoro sashimi de salmão, atum e haddock.

      Curioso, Arthur se levantou e apontou para iguaria russa dizendo: - Bala papai. Qué bala papai! Bem, sei que não é bala, mas a vida é experiência...  Inseri uma colherzinha e meu pequeno companheiro sorridente fechou a boca, bochechou um pouco e fez cara de espanto. Óbvio que ele estava esperando alguma coisa doce e se deparou com algo salgado com sabor de maresia. - brruuuhhh.... Cuspiu tudo e disse: - Eca papai, eca papai, qué não, qué não.

      Depois da satisfação do leite quentinho, da decepção das balinhas pretas com gosto de aquário e de assistir ao mesmo desenho por três horas dando gargalhadas, Arthur se deitou no sofá e dormiu. Enquanto isso saboreei mais um pouco de caviar e fiquei pensando em como os nossos gostos e prazeres se transformam ao longo da vida. Dormi às seis e meia e acordei às oito, mas fui trabalhar feliz da vida por ter vivenciado uma madrugada bem inusitada, daquelas das quais a gente jamais se esquece.

sábado, 29 de junho de 2013

Fast food


       Olhei o relógio e já eram treze e vinte. Pelo adiantado da hora, resolvi almoçar em algum lugar por perto onde eu não me demorasse, porque às quatorze haveria uma reunião de trabalho. Decidi-me então por um restaurante de comida a quilo próximo.


       Caminhei até o corredor e a porta do elevador se abriu. Quando eu estava entrando, um colega me chamou. Parei para falar com ele e foi o suficiente para a faminta porta quase me mastigar, não desse eu um pulo instintivo para trás.

       Apensar do susto, cheguei inteiro à calçada. Olhei para o sinal de trânsito e ainda havia alguns segundos de luz verde. No meio da travessia um bando de maitacas a busca de comida sobrevoou aos berros a faixa de pedestres. Olhei para o alto para ver as barulhentas aves e nesse tempo uma moto de entregas de restaurante quase passou por cima de mim. Corri e ao som de buzinas alcancei o outro lado.

       Finalmente no restaurante fiz meu prato e me sentei no único lugar vago, uma mesa próxima à TV, a qual transmitia uma reportagem a respeito dos efeitos do estresse na produção de leite de uma fazenda. A ciência demonstra que nem as "mimosas" holandesas estão salvas dos efeitos da pós-modernidade.

       Larguei os talheres e mantive o olhar fixo na tela. A garçonete murmurou algo. Por reflexo, balancei negativamente a cabeça. Rapidamente ela jogou um prato já usado sobre o arroz, o purê e as almôndegas e desapareceu com o meu intocado almoço.

       Por segundos fiquei atônito até compreender que a garota não havia me perguntado se eu queria beber algo, mas sim se eu ainda iria comer a comida na qual eu ainda nem havia tocado. Bem, expliquei o ocorrido ao gerente, entreguei-lhe a comanda, disse-lhe que eu não iria pagar a conta e fui embora, porque, afinal, o tempo não para, seja para os elevadores, maitacas, motos, vacas, garçonetes e até para mim.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Vinho Tinto e Luta


    

      Aroma intenso, textura macia, sabor marcante impresso pelo fungo penicillium e aspecto bem peculiar. Estou me referindo ao famoso queijo italiano tipo azul, gorgonzola. Para acompanhá-lo, o vinho precisa ter personalidade forte, um tinto encorpado, por exemplo.

     Essa foi a combinação que resolvi degustar hoje à tarde, ao chegar mais cedo a minha casa, depois de ter sido liberado antes do final do expediente em razão de manifestação popular ocorrida no Centro do Rio de Janeiro. Sobre a mesa da sala coloquei a garrafa do tinto, uma taça, uma jarra de água, um copo, a tábua com um bom pedaço de gorgonzola, uma faca, um garfo e um guardanapo.

     Saquei a rolha e enchi a taça. Enquanto deixava o vinho respirar, liguei a televisão, bebi um pouco de água e cortei em cubos uma boa porção do queijo. A imagem a que assisti tinha sabor tão marcante quanto o tinto e o gorgonzola. Milhares de cidadãos pelas ruas do Rio e de outras cidades do Brasil manifestando insatisfação pela maneira como o destino deste país vem sendo conduzido, assim como indignação com o comportamento imoral, inescrupuloso e criminoso da nossa classe política.

     Vendo aquela cena, apreciei o aroma, bebi um bom gole do vinho e experimentei o formaggio. Tudo aquilo aqueceu meu peito. Sensação deliciosa. Mas logo veio um sentimento de culpa por não estar lá. Lembrei então de alguns colegas que foram para a passeata. Em especial pensei em uma amiga. Menina jovem, inteligente, linda, de personalidade admirável. Às vezes suave e delicada como um branco ou espumante, outras, um tinto encorpado verdadeiramente grandioso.

     Comi mais alguns pedaços de queijo, terminei de beber o meu vinho e fiquei ali, imaginando aquela garota linda representando o povo brasileiro. Tenho certeza que ela personifica honrosamente a nossa nação e que, se depender dela, o caminho das ruas não será mais esquecido, bem como que de agora em diante os gritos de basta não ficarão mais presos na garganta.

Obs: Dedico este texto a Clarissa, Jéssica, Thalita, Raphael, Marisa, Christian e a todos que foram às ruas!

terça-feira, 18 de junho de 2013

Coisas Boas da Vida

    

         Quem não gosta de viagens caras, boa comida e vinho francês? Adoro tudo isso e ainda acrescentaria a minha preferência, cavalos de raça! Acho admirável passear por Paris, saborear um prato da culinária francesa acompanhado de um excelente cabernet sauvignon. Uma temporada na Ecole d'equitation de Saumur dispensa palavras.

     Contudo, Paris, New York, Londres ou qualquer ilha do Caribe jamais serão capazes de me proporcionar maior alegria do que a que sinto quando acordo cedo no domingo, tomo café fresco com pão, manteiga e mortadela defumada, assisto Globo Rural e depois vou com a criançada brincar na pracinha.

     Acho muito pouco provável também, que todas aquelas coisas caras me tragam maior satisfação do que ver Aninha e Arthur fazendo caretas e dando gargalhadas juntos, enquanto almoçamos frango de padaria com vinho da Serra Gaúcha comprado no mercado da esquina. Quanto aos cavalos de raça e a Ecole d'equitation de Saumur? Bem..., aí..., levo a molecada para montar comigo!

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Experimental

    

       Acredito que a vida seja uma trajetória perene de tentativas. É a trilha do acertar e do errar. É um processo contínuo de aprendizado experimental.

     Experimentamos de tudo ao longo do caminho. Vivemos alegria, tristeza, prazer, dor, amor, ódio, sucesso, fracasso, saúde, doença.

     Tudo o que fazemos são tentativas, experiências. Mas como saber se acertamos ou erramos? Tudo pode ser tão relativo...

     Será que tudo o que nos traz alegria é acerto? Será que tudo o que nos causa dor é erro? Definitivamente não sei.  Mas independente do que seja o certo ou o errado, tenho a convicção plena de que a minha vida é uma sucessão interminável de erros e acertos ou acertos e erros, porque senão ela não teria o menor propósito de ser.


domingo, 2 de junho de 2013

Poema Luz e Calor





Hoje senti desejo de luz e calor;
abracei estrelas.
Uma onda de fogo percorreu o meu corpo,
beijou a minha mente.

A clarividência vencia tudo,
até os sons da alma.
Veio a paz, a calma.
Meu corpo flutuou livre;
vi o espaço, a Terra.

Mergulhei em seu azul gelado,
nadei nu de tudo.
Uma explosão...
Acordei!




sábado, 1 de junho de 2013

Cavalos!



         Talvez seja uma das lembranças mais antigas da minha infância, mas me recordo como se fosse ontem o dia em que montei pela primeira vez. Era um cavalinho tordilho de aluguel em pracinha. Alguns o chamariam de pangaré, mas para mim era um bravo gigante, Pegasus!

        Meu pai pediu ao rapaz que o conduzia para se afastar um pouco, para tirar uma foto. Naquele momento, o bicho bateu o casco no chão com força, se tremeu todo para espantar as moscas, do alto da crina à cauda, e deu um longo e sonoro sopro fazendo vibrar narinas e beiços.

        Aquilo fez o cheiro de cavalo de roça subir e invadir a minha alma. Ao mesmo tempo meu coração disparou deliciosamente e por instinto me estiquei para segurar as rédeas. Aquela sensação maravilhosa provocada pela adrenalina e aquele cheiro inconfundível ainda estão aqui, dentro de mim.

        Depois desse vieram muitos outros. Cavalinhos de aluguel, de fazenda, de hotel, de quartel, de clube, de todas as raças, tamanhos e cores. Foram cavalgadas, passeios, desfiles, quilômetros a galope, saltos, tombos e algumas fraturas pelo corpo. Dentre todos guardo em meu coração especialmente um, Voust Noir.  Desculpe-me velho guerreiro pelo mau jeito na hora da despedida. Fique com Deus.