Ele passou a semana inteira louco de vontade de escrever
algo que não fosse jurídico. Não desgosta da redação técnica da
advocacia; ao contrário, gosta bastante, sobretudo da liberdade e das possibilidades
da argumentação baseada na lógica do razoável.
Mas não era disso que estava desejoso; queria gritar e pôr para fora
alguma coisa entalada em sua alma.
A manhã de sábado chegou e finalmente poderia dar asas
àquele impulso. Há quem diga que essa sua vontade é existencial. Bem, como simples narrador deste conto não
sei, mas quem o diz o conhece, tem suas razões, portanto deve estar certo.
Independente da sua natureza, ele despertou ainda com aquele
desejo. Foi à cozinha, preparou
mamadeiras para seus dois filhos, fez o café e acordou a esposa. Da varanda do apartamento viu o dia nublado,
chuvoso, e concluiu: nada de clube, piscina no play ou pracinha; acho que vai
dar para ficar em casa escrevendo, se as crianças deixarem!
Depois desse preâmbulo matinal, ligou o computador, encarou
por alguns minutos a folha alva e pensou: uma página em branco é a maior obra
da literatura universal. Nela há tudo, basta imaginar. Existem romances, novelas, contos, fábulas, crônicas, poemas, biografias, ficções, o passado, o
presente, o futuro e tudo ao mesmo tempo.
Mas apesar da filosofia de lugar comum, olhou, olhou, olhou
e não encontrou história alguma naquela tela carente de tintas. Nada de frases;
sequer tropeçou em uma mísera letra. Ficou
ali pouco mais de uma hora e nada. Desligou o computador e foi para a
varanda. Enquanto o olhar vagueava por
onde ele nem sabia, sua esposa lhe perguntou:
- Amor, vamos almoçar em um restaurante ou você quer que eu
faça comida?
- Acho que não estou com vontade de sair. O que você prefere?
- Tanto faz.
- Então vamos comer aqui mesmo. Já almoço em restaurante a semana toda...
- Tudo bem. Mas você pode ir ao mercado comprar alguma coisa?
- Posso sim. Quer massa?
- Hunhum...
No mercado, pegou dois pacotes de capeletti, uma caixa de molho de
tomate, um saquinho de queijo ralado; pôs tudo na cesta e foi à seção de
bebidas importadas. Escolheu um carménère chileno; pagou as compras e voltou para
casa.
Assim que terminou o almoço, colocou os pratos na pia e
deixou a garrafa vazia na lixeira do corredor do andar, para não correr o risco
de as crianças a quebrarem. Quando
retornou, viu a esposa e a filha se arrumando:
- Ué, vocês vão sair?
- Vamos ao shopping trocar essas roupinhas que ela ganhou. Você
pode ficar com o Arthur?
- Posso, mas, por favor, não demorem muito...
- No final da tarde a gente volta. Beijo!
Mãe e filha saíram e ele falou ao filho:
- Meu amigão, eu sei que você só tem um ano e onze meses, mas
vê se colabora. Tá?!
- Qué vê Mickey, papai!
O pai ligou o DVD e se sentou no sofá, enquanto o filho se
ajeitou no chão mesmo. Em minutos os
dois já estavam deitados, cada um em seu lugar, aquele com o olhar pesado de vinho,
o outro rindo solto. Entre pestanejadas
demoradas, o pai começou a refletir: passei a semana inteira com vontade, mas
agora não sei sobre o que escrever. Acho
que vou tentar um poema de conflito entre o corpo e a alma. Melhor não, mês
passado fiz um inspirado em Cruz e Souza e minha mãe perguntou a meu irmão se
eu estava pensando em me matar.
Descartou a ideia, abriu os olhos e viu o Arthur sentado
ali, em frente ao sofá. Cochilou um
pouco e imaginou escrever uma crônica acerca da liberdade de orientação sexual e dos novos
arranjos familiares. Logo desistiu do assunto, afinal de contas não possuía
conhecimento suficiente.
Uns tantos minutos após, abriu os olhos apreensivo, mas logo
avistou o menino em pé ao lado do sofá. Relaxou
e, de olhos fechados, se viu escrevendo um conto a respeito de um homem casado,
pai de filhos pequenos, possivelmente atravessando a chamada crise dos
quarenta. Gostou do tema e pensou logo
em uma frase: ele ainda não é velho, longe disso, mas por outro lado já não é
tão novo quanto gostaria.
No entanto, percebeu que além disso teria que falar sobre o
desgaste natural da vida em comum, em razão da rotina, dos filhos, do trabalho
e de muitas outras coisas por que passam casais da classe média brasileira nessa
fase da vida. Compreendeu, também, que o
tema poderia ser escasso de passagens interessantes, capazes de prender a
atenção do leitor; ou então, levar a discussões interiores conflituosas e
áridas demais. A possibilidade de a
esposa ler e não acreditar no caráter meramente ficcional do texto o
desestimulou, porque esse fato poderia suscitar aborrecimento conjugal.
Durante o pensamento, ou sonho – nem ele sabia ao certo -,
ouviu um barulho e levantou-se sobressaltado, chamando em voz alta:
- Arthur, Arthur, onde você está? Venha aqui.
Imediatamente ouviu os passinhos apressados do garoto se
aproximando, vindo pelo corredor do apartamento. Quando chegou, o pai o viu com os cabelos
molhados para trás, e as mangas compridas da camisa ensopadas até os cotovelos.
A barriga também estava encharcada. Mas o que mais o intrigou foi uma coisa verde
empastada pelo rosto. Parecia um creme
feito de criptonita.
O pai foi até o banheiro e encontrou a tampa do vaso levantada
e o chão molhado. Por dentro do
sanitário a louça estava suja daquela substância cor de clorofila. Ainda meio atordoado pelo vinho ele se perguntou:
caramba, o que é isso? Logo em seguida
ouviu a porta da sala se abrindo e pensou: graças a Deus, elas chegaram.
Diante da cena, a mãe perguntou:
- O que houve? Você estava dormindo?!
- Acho que ele se lavou no vaso, mas não estou encontrando o
sabonete.
- Sabonete que nada; isso é Pato Purific, pedra sanitária
adesiva. Será que ele comeu?
-
Não sei, mas creio que não. Se ele pôs na boca deve ter cuspido, porque o gosto
deve ser forte, horrível. Além disso,
ele não está vomitando nem nada. Está é rindo. Olha só a cara de safado...