quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Poema da arte do transbordamento






Tirando os que têm alma de Mineiro,
porque são discretos até na loucura,
desconheço bom poeta totalmente temperado,
pois poesia é transbordamento de sentimento.
Quando o saco enche, os versos vazam fácil,
ácidos como vinagre ou ardidos como pimenta.
Se o coração explode, o poema ecoa longe,
doce, amargo ou salgado,
depende do sabor do beijo,
do abraço, do carinho,
do fel ou das lágrimas,
que derramaram a tinta da pena.
Enfim, na arte do transbordamento,
tudo é tempero e destempero.



            Esse poema foi inspirado em trecho escrito pelo poeta inglês William Wordsworth (1770-1850), in Preface to Lyrical Ballads: "Poetry is the spontaneous overflow of powerful feelings: it takes its origin from emotion recollected in tranquility" (A poesia é o transbordamento espontâneo de sentimentos intensos: tem a sua origem na emoção recordada num estado de tranquilidade).  Apesar dessa última observação, penso que nem sempre a poesia aguarda o tal estado de tranquilidade para se manifestar. Muitas vezes ela irrompe no calor da emoção mesmo!
            Mas é claro que o poema acima é apenas uma visão poética e romântica do processo criativo da poesia, portanto, desprovida de fundamento científico.  Aliás, vários poetas maravilhosos, acredito que Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto*, dentre muitos outros, não se deixavam levar por destempero de momento. Escreviam com equilíbrio e serenidade - "de cabeça quente só se comete crime".
          Para falar a verdade, creio que uma visão, ou situação, não exclui outra. Ou seja, belas poesias podem ser construídas como projetos de arquitetura, como dizia João Cabral de Melo Neto**.  No entanto, acho mais romântico pensar, assim como Wordsworth, que a origem da poesia é o transbordamento do sentimento experimentado ao longo da vida.


(*) “Os poetas que escrevem por escassez de ser, como eu, planejam os livros, têm um vazio a preencher. Os outros transbordam.”

(**) “Para mim a poesia é uma construção, como uma casa. Isso eu aprendi
com Le Corbusier.”


Segunda possível versão

Há tempo em que poesia
é transbordamento de sentimento.
Quando o saco enche, os versos vazam fácil,
ácidos como vinagre ou ardidos como pimenta.
Se o coração explode, o poema ecoa longe,
doce, amargo ou salgado,
depende do sabor do beijo,
do abraço, do carinho,
do fel ou das lágrimas,
que derramaram a tinta da pena.
Mas em outro tempo,
poesia é arquitetura,
bem planejada e executada,
de retrato da realidade
e preenchimento de vazios,
em construção ou reforma,
pessoal ou social.
Ao fim, na arte do transbordamento,
tal qual na do retrato ou preenchimento,
tudo é mistura,
de tempero, destempero
e projeto calculado.

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