segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Poema do divórcio de mim mesmo



Se minh'alma se cansar desse corpo pequeno
e nesse corpo não couber mais minh'alma larga;
se meu corpo se libertar dessa alma amarga
e essa alma se livrar desse corpo veneno;
se ambos acabarem com esse caso óbvio
e juntos apagarem essa luz antiga,
sem mágoa, briga, fel ou intriga,
finda-se de vez a história Otavio.
Mas tal divórcio de mim mesmo
só haverá quando Deus quiser;
enquanto isso, corpo e alma
vão se amando como dá.
Aliás, minh'alma o corpo quer
e o corpo a alma muito mais.

Poema para Aninha (reconstruído)


Pequena do rosto bonito,
que tens o sorriso largo,
me dá um abraço infinito
 e jamais me deixes amargo.

Por ti sou rubro e feliz,
pulso vivo e forte,
repleto de luz e sorte,
e minha batida te diz:

este coração paterno
até o eterno te ama!

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Os sentidos da vida (pequeno conto urbano)

X
     

       
            Naquela manhã o despertador ligou sintonizado em uma rádio de música clássica, em que tocava a Primavera de Vivaldi. Cortina fechada, luz apagada, sem abrir os olhos Paulo se levantou como se estivesse acordando de um longo inverno.  A melodia o lembrou de que adorava os sons da vida e lhe deu a certeza de que seria um dia lindo.

            Tomou banho, se arrumou, fez café, colocou na mochila a muda de roupa para a musculação após o expediente, o celular, alguns outros objetos e partiu para o trabalho.

            Alguns quarteirões perto dali ela abriu os olhos. Desde criança amava ser acordada daquele jeito: o sol acariciando seu rosto e lhe trazendo logo cedo as cores do mundo.

            No ônibus, Paulo se sentou no lugar de sempre, junto à janela. O motorista puxou papo:

            - E aí Paulo, tudo bem?

            - Tudo! E contigo Luiz?

            - Também, mas o que me mata é esse trânsito murrinha.

            - Pra mim tá ótimo, assim vou curtindo a paisagem - os dois riram e seguiram em silêncio.

            Dois pontos adiante ela entrou, caminhou até o banco próximo ao motorista e se sentou ao lado de Paulo. Ele virou seu rosto em direção a ela. A moça fixou os olhos nos lábios dele, achou-os lindos e manteve o olhar. O rapaz não se conteve e disse baixinho: - nossa, que perfume! A moça gostou do que viu, olhou para baixo e discretamente sorriu.

            Alguns minutos depois ela percebeu Paulo girando a cabeça em direção à janela. Examinou-o de cima a baixo. Cabelo desarrumado mas bonito, ombros largos e braços fortes, óculos de sol fora de moda e meias claras com calça escura; nada que uma garota de bom gosto não pudesse resolver. Paulo se virou novamente para frente, e ela, por reflexo, disfarçou.  Embora tenha sido bem discreta, de alguma forma ele pressentiu. Desconhece a razão, mas sempre sabe quando está sendo observado. Uma vez a vó lhe disse que ele tinha os sentidos apurados.

            Ainda provocado por aquele cheiro de mulher, Paulo roçou levemente seu braço no dela, aguardando, no mínimo, um afastamento. Ao contrário, ela manteve o braço e encostou sua coxa na dele. Por não esperar por isso, seu coração de marinheiro de primeira viagem disparou. Ele respirou fundo e tentou parecer calmo. A garota colocou a mão levemente sobre a perna dele.

            Apesar de ser um sujeito confiante, por alguns segundos se sentiu menino, meio perdido diante da novidade. Parecia que todos os seus sentidos tinham fugido de medo, apenas o tato permanecia ali. Mesmo inseguro, pôs sua mão sobre a dela. Achou-a delicada, com pele suave e bem jovem. Continuou acariciando a mão direita da menina.  Não havia aliança de noivado, apenas um anel em forma de flor. Por certo também não haveria aliança na esquerda - deduziu.  Deslizou os dedos até o antebraço e o encontrou arrepiado. De repente a mão e a perna de Paulo ficaram vazias. Ele cruzou os braços à frente de seu tronco e permaneceu em silêncio, quieto.

            Na segunda parada ela colocou algo no bolso da camisa dele, levantou-se e desceu. Curioso ele foi conferir. Era um pequeno pedaço de papel. Desdobrou-o e, com as pontas do polegar e do indicador em pinça, enxergou no centro um recorte em forma de coração. Ele ficou de pé, aproximou-se do motorista e perguntou:

            - Luiz, você viu onde aquela menina saltou?

            - No Instituto de Surdos.

            - Você a conhece?

            - Sim, garota legal. Pega este ônibus há anos. Era aluna, agora é professora.

            - Que bom, pertinho do meu trabalho. Vê pra mim se tem algo escrito aqui.

            - Tem sim: "quero ser a luz da tua vida. Te encontro aqui amanhã no mesmo horário, com o mesmo perfume e o mesmo anel. Beijos, Carlinha". Aí cara, se deu bem, maior gata!

            - Valeu... Já é o meu ponto?

            - É. Pode descer, mas cuidado que eu fiquei uns dois passos longe do meio fio.

            - Tchau, até amanhã!
      

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Homenagem ao meu Velho lobo do mar


     Do tempo em que minhas mãos mal alcançavam a maçaneta, lembro-me bem da imagem dele à porta da sala de estar, com a cara fechada, vestindo um terno escuro. Mas gostava mesmo era daquela farda branca com dourados nos ombros contrastando com o bigode grosso ainda bem negro e os olhos sempre verdes.


     Ainda parece ontem, quando, em seu colo, senti pela primeira vez cheiro que pensava ser de mar. Hoje sei que era uma mistura de fumaça de óleo diesel com ar-condicionado, a qual impregnava o seu uniforme cinza de serviço.

     Aliás, também me lembro como se fosse hoje o dia em que me levou pra conhecer o seu local de trabalho. Atravessamos uma pontezinha de madeira que balançava muito. Em seguida passamos por uma porta estranha. Era de ferro, arredondada e no meio havia uma espécie de volante que girava para um lado e para o outro, para fechar e abrir. Depois descemos e subimos várias escadas esquisitas, também de ferro, estreitas, bem estreitas.

     Lá tudo era cinza e exalava aquele cheiro que eu pensava ser de mar. Quer dizer, havia sim algumas coisas douradas, brilhantes, sobre as quais um rapaz com um gorrinho branco engraçado na cabeça me falou: - Isso são balas de canhão! Perguntei ao meu pai onde estávamos. Ele me disse: - Em um contra-torpedeiro da Marinha do Brasil.

     Finalmente almoçamos: arroz, batatas fritas e bife à milanesa com algum refresco cujo sabor já não me lembro. À tarde voltamos para casa. Achei aquele dia fantástico.


PS: a foto de família foi tirada em 1975, acredito que cerca de 2 a 3 anos depois da visita que fiz com meu pai ao CT Piauí - D 31. Da esquerda para a direita: Ricardo, minha mãe, meu pai e eu.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Poema Celulares

Toca, toca, toca.
Mexe, remexe, tira da bolsa.
Olha, sorri, atende.
Fala, fala, fala.
Alto, médio, baixinho.
Percebe, disfarça, mão no cabelo,
joga pra trás, vira de lado.
Interroga, afirma, exclama.
Beijo, tchau, desliga.
Enfia na bolsa.
Com quem será...?
O que será...?
Sei lá, assunto dela.
- Ei, fofoqueiro!
- Que nada! Observador da natureza humana.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Reflexo instantâneo



Como reflexo instantâneo, vejo flores em um pulso e estrelas no verso pelo reverso do espelho.

Surpreendo-me e, conduzido cativo, imagino a vida em metáfora, ardendo igual à brasa de um cigarro. Por trás da fumaça, percebo desfocado um sorriso sedutor, reluzindo prata.

Assustado, olho para o lado e encontro Clarice Lispector na mesinha de cabeceira, regendo abstrata as palavras com a sua caneta-presente.

Redescubro o que já sei, que de lá ela dispõe como ninguém cada letra em um mosaico de ideias, imagens e lembranças escritas.