quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Poema da arquitetura transparente

Foto de Christian Barroso in:



Quando as paredes opacas do mundo caem,
e a arquitetura da vida se faz transparente,
a crosta recoberta de terra logo se acanha,
e a cidade concreta, em tudo fragmentada,
permeada por estruturas ilógicas, obscuras,
complexa em suas retas, curvas, distâncias,
esferas, cores, crenças e sons de suas feras,
torna-se simples brinquedo pueril e volátil
de lata, plástico, isopor, papel e barbante
aos pés de uma suprema Criança, que sabe
que a urbana é pequena, o país é pequeno,
o planeta é pequeno, o universo um sopro.
E a infanta etérea olha, caminha e brinca
de ser humana na metrópole, que de si criou.





sábado, 14 de setembro de 2013

O sumiço do pato (pequeno conto familiar)

         



         Ele passou a semana inteira louco de vontade de escrever algo que não fosse jurídico. Não desgosta da redação técnica da advocacia; ao contrário, gosta bastante, sobretudo da liberdade e das possibilidades da argumentação baseada na lógica do razoável.  Mas não era disso que estava desejoso; queria gritar e pôr para fora alguma coisa entalada em sua alma.

         A manhã de sábado chegou e finalmente poderia dar asas àquele impulso.  Há quem diga que essa sua vontade é existencial.  Bem, como simples narrador deste conto não sei, mas quem o diz o conhece, tem suas razões, portanto deve estar certo.

         Independente da sua natureza, ele despertou ainda com aquele desejo.  Foi à cozinha, preparou mamadeiras para seus dois filhos, fez o café e acordou a esposa.  Da varanda do apartamento viu o dia nublado, chuvoso, e concluiu: nada de clube, piscina no play ou pracinha; acho que vai dar para ficar em casa escrevendo, se as crianças deixarem!

         Depois desse preâmbulo matinal, ligou o computador, encarou por alguns minutos a folha alva e pensou: uma página em branco é a maior obra da literatura universal. Nela há tudo, basta imaginar. Existem romances, novelas, contos, fábulas, crônicas, poemas, biografias, ficções, o passado, o presente, o futuro e tudo ao mesmo tempo.

         Mas apesar da filosofia de lugar comum, olhou, olhou, olhou e não encontrou história alguma naquela tela carente de tintas. Nada de frases; sequer tropeçou em uma mísera letra.  Ficou ali pouco mais de uma hora e nada. Desligou o computador e foi para a varanda.  Enquanto o olhar vagueava por onde ele nem sabia, sua esposa lhe perguntou:

         - Amor, vamos almoçar em um restaurante ou você quer que eu faça comida?

         - Acho que não estou com vontade de sair.  O que você prefere?

            - Tanto faz.

         - Então vamos comer aqui mesmo.  Já almoço em restaurante a semana toda...

         - Tudo bem. Mas você pode ir ao mercado comprar alguma coisa?

         - Posso sim. Quer massa?

         - Hunhum...

         No mercado, pegou dois pacotes de capeletti, uma caixa de molho de tomate, um saquinho de queijo ralado; pôs tudo na cesta e foi à seção de bebidas importadas.  Escolheu um carménère chileno; pagou as compras e voltou para casa.

         Assim que terminou o almoço, colocou os pratos na pia e deixou a garrafa vazia na lixeira do corredor do andar, para não correr o risco de as crianças a quebrarem.  Quando retornou, viu a esposa e a filha se arrumando:

         - Ué, vocês vão sair?

         - Vamos ao shopping trocar essas roupinhas que ela ganhou. Você pode ficar com o Arthur?

         - Posso, mas, por favor, não demorem muito...

         - No final da tarde a gente volta. Beijo!

         Mãe e filha saíram e ele falou ao filho:

         - Meu amigão, eu sei que você só tem um ano e onze meses, mas vê se colabora. Tá?!

         - Qué vê Mickey, papai!

         O pai ligou o DVD e se sentou no sofá, enquanto o filho se ajeitou no chão mesmo.  Em minutos os dois já estavam deitados, cada um em seu lugar, aquele com o olhar pesado de vinho, o outro rindo solto.  Entre pestanejadas demoradas, o pai começou a refletir: passei a semana inteira com vontade, mas agora não sei sobre o que escrever.  Acho que vou tentar um poema de conflito entre o corpo e a alma. Melhor não, mês passado fiz um inspirado em Cruz e Souza e minha mãe perguntou a meu irmão se eu estava pensando em me matar.

         Descartou a ideia, abriu os olhos e viu o Arthur sentado ali, em frente ao sofá.  Cochilou um pouco e imaginou escrever uma crônica acerca da liberdade de orientação sexual e dos novos arranjos familiares. Logo desistiu do assunto, afinal de contas não possuía conhecimento suficiente.

         Uns tantos minutos após, abriu os olhos apreensivo, mas logo avistou o menino em pé ao lado do sofá.  Relaxou e, de olhos fechados, se viu escrevendo um conto a respeito de um homem casado, pai de filhos pequenos, possivelmente atravessando a chamada crise dos quarenta.  Gostou do tema e pensou logo em uma frase: ele ainda não é velho, longe disso, mas por outro lado já não é tão novo quanto gostaria.

         No entanto, percebeu que além disso teria que falar sobre o desgaste natural da vida em comum, em razão da rotina, dos filhos, do trabalho e de muitas outras coisas por que passam casais da classe média brasileira nessa fase da vida.  Compreendeu, também, que o tema poderia ser escasso de passagens interessantes, capazes de prender a atenção do leitor; ou então, levar a discussões interiores conflituosas e áridas demais.  A possibilidade de a esposa ler e não acreditar no caráter meramente ficcional do texto o desestimulou, porque esse fato poderia suscitar aborrecimento conjugal.

         Durante o pensamento, ou sonho – nem ele sabia ao certo -, ouviu um barulho e levantou-se sobressaltado, chamando em voz alta:

         - Arthur, Arthur, onde você está? Venha aqui.

         Imediatamente ouviu os passinhos apressados do garoto se aproximando, vindo pelo corredor do apartamento.  Quando chegou, o pai o viu com os cabelos molhados para trás, e as mangas compridas da camisa ensopadas até os cotovelos.  A barriga também estava encharcada.  Mas o que mais o intrigou foi uma coisa verde empastada pelo rosto.  Parecia um creme feito de criptonita.

         O pai foi até o banheiro e encontrou a tampa do vaso levantada e o chão molhado.  Por dentro do sanitário a louça estava suja daquela substância cor de clorofila.  Ainda meio atordoado pelo vinho ele se perguntou: caramba, o que é isso?  Logo em seguida ouviu a porta da sala se abrindo e pensou: graças a Deus, elas chegaram.

         Diante da cena, a mãe perguntou:

         - O que houve? Você estava dormindo?!

         - Acho que ele se lavou no vaso, mas não estou encontrando o sabonete.

         - Sabonete que nada; isso é Pato Purific, pedra sanitária adesiva. Será que ele comeu?

         - Não sei, mas creio que não. Se ele pôs na boca deve ter cuspido, porque o gosto deve ser forte, horrível.  Além disso, ele não está vomitando nem nada. Está é rindo. Olha só a cara de safado...

sábado, 7 de setembro de 2013

Poema dos potros negros





Nosso prado, pasto farto em tempo árido
de cabeças e patas de multiforme tropa,
onde para poucos, tudo com o que se topa
se arranca, leva-se com desejo ávido.

Aves de rapina conduzem esse tropel,
ora em corrida sem rumo desembestada,
ora em marcha apática, lenta, estagnada,
na aparente carência d’algum bravo corcel.

Mas se ele surge, é pro bem e pro mal.
Expoente único, há muito já anacrônico,
melhor não vir. Dissolva-se, pedra de sal!

No lugar, bando de potros negros surgiu
- gêmeos, iguais, bloco selvagem sem rosto -
do coletivo ventre duma potra que os pariu.