quarta-feira, 31 de julho de 2013

Poema da noite e do dia


Hoje quero dormir cedo,
acordar tarde,
estender a noite,
encurtar o dia,
porque no breu encontro
os desencontros da luz.

Amanhã quero acordar cedo,
me deitar tarde,
prolongar o dia,
reduzir a noite,
porque na luz desvendo
o obscuro do breu.

Depois de amanhã,
viver a vida sonhada,
sonhar o sonho vivido.

A vitória da derrota (pequeno conto de advogado)

                      

              Assim que o oficial de justiça lhe entregou o mandado, José Augusto o examinou e leu a cópia da petição inicial que o acompanhava, para compreender melhor o caso e as circunstâncias que levaram o juiz a proferir aquela decisão.  Telefonou para a secretária do diretor do hospital particular para o qual trabalhava e lhe pediu para marcar uma reunião ainda naquela tarde.  Explicou-lhe se tratar de uma ordem judicial que precisava ser cumprida em quarenta e oito horas.  Ela lhe disse que falaria com o chefe e que lhe retornaria em breve.

            Enquanto aguardava resposta, viu surgir em sua mente a história daquela criança como se fosse um filme.  Imaginou a dor que a mãe sentiu quando o médico lhe contara no dia da primeira ultrassonografia que sua filha era portadora de uma grave síndrome e que provavelmente não nasceria viva ou, se nascesse, certamente não passaria do primeiro ano de vida.

            Nesse momento a secretária ligou e lhe avisou que seria recebido em duas horas.  O filme prosseguiu e viu em detalhes o drama de uma gravidez árdua, um parto complicado e a luta incansável pela vida sendo travada e vencida pela pequena a cada crise convulsiva, a cada parada cardiorrespiratória, a cada dia, ou melhor, a cada minuto.

            Após um mês de internação hospitalar em UTI neonatal, mesmo não havendo previsão contratual, a operadora do plano de saúde ofereceu a sua mãe uma unidade de tratamento intensivo domiciliar.  A empresa não fez esse acordo por espírito humanitário, mas sim porque essa solução lhe era financeiramente mais vantajosa.  O médico da menina autorizou e a proposta foi aceita.  Finalmente a neném chegava ao lar.

            Olhou o relógio, já estava na hora de subir ao andar da diretoria.  Assim que entrou, o diretor lhe sorriu, fez um gesto para que se sentasse e lhe perguntou:

            - Então, doutor José Augusto, o que houve?

            Em resposta, o advogado lhe entregou o mandado. O médico o leu rapidamente em silêncio, refletiu e indagou:

            - Veja bem doutor, esse serviço foi assumido pela operadora de planos de saúde, no entanto nós já não pertencemos mais a sua rede credenciada. Por que o juiz determinou que o nosso hospital mantenha em funcionamento esse serviço de home care? Nós não temos obrigação contratual alguma nesse caso.

            O advogado explicou que aquela operadora estava praticamente falida, não pagava suas dívidas há meses e que seus sócios estavam foragidos em razão de terem sido denunciados pelo ministério público por crimes financeiros.  Salientou que aqueles fatos fizeram com que a empresa subcontratada pela operadora para manter o home care funcionando informasse à mãe da criança que cessaria os serviços por falta de pagamento em uma semana.

            José Augusto esclareceu ainda que o advogado da família concluiu que seria mais eficaz ajuizar uma ação diretamente contra um hospital credenciado do que processar o plano de saúde, até porque ele não sabia, ou fingiu não saber, que no momento do ajuizamento da ação o hospital já havia se descredenciado. Disse ainda que o juiz, por também não saber dessa particularidade, concordou e concedeu a liminar, determinando que o hospital adotasse todas as medidas necessárias à manutenção do serviço e à preservação da vida da paciente em quarenta e oito horas.

            Ao término da narrativa, o diretor impacientemente se ajeitou em sua cadeira, olhou pela janela por alguns segundos e falou sem hesitar:

            - Mas eu não concordo com essa decisão, ela é flagrantemente equivocada e o senhor sabe disso bem melhor do que eu. Nosso hospital não pertence mais à rede credenciada daquela operadora. Se o plano de saúde quebrou, o paciente deve contratar outro ou buscar assistência médica na rede pública. Doutor José, eu não vou cumprir essa ordem nem que um raio caia na minha cabeça!

            - Bem, doutor, tecnicamente o senhor pode estar certo, contudo existe uma decisão judicial e se não a cumprir responderá por crime de desobediência. Há também o risco de morte para a criança e, se isso acontecer, o senhor será acusado de homicídio.

            - Doutor José, não vou cumprir a ordem, não quero que se forme precedente nesse sentido. Essa decisão é absurda. Você é o chefe do nosso departamento jurídico, recorra e arrume um jeito de derrubar essa liminar. Antes de ser empresário eu sou médico e não me impressiono com a morte. Se essa menina morrer, paciência, todo mundo morre um dia, e pelo quadro lhe digo que ela não viverá muito. Por favor, seja profissional, não se permita sensibilizar pelo estado da menina.  Aja rápido para que as coisas não se compliquem.

            José Augusto sentiu um gosto amargo ao ouvir o médico lhe dizer que não se importava com a morte de uma criança. Porém a acusação de estar deixando o sentimento atrapalhar o profissionalismo o perturbou muito mais. Um desconforto duplo tomou conta de si. Pouco na consciência, muito no orgulho.

            Terminada a reunião, o advogado voltou a sua sala para definir uma estratégia de atuação processual. Considerou que naquelas circunstâncias seria muito difícil conseguir convencer um desembargador a suspender a decisão.  Estava claro que seria necessário criar uma alternativa, a qual viabilizasse a cassação da ordem sem que a criança ficasse sob risco de morte.  De qualquer modo, ele precisava tentar suspendê-la antes de se esgotar o prazo.

            Durante o final daquela tarde, ele fez uma petição requerendo ao juiz a reconsideração da sua liminar ou, caso não a reconsiderasse, que mandasse citar o Estado para ingressar como réu na ação, sob a alegação de que, independentemente da responsabilidade das empresas privadas, o Poder Público também tinha o dever constitucional de prestar o serviço de saúde indispensável à preservação da vida daquela menina.

            No dia seguinte, José Augusto foi ao Fórum logo na primeira hora do expediente.  O magistrado o recebeu e o ouviu atentamente. Concluída a explanação sobre o caso, o juiz elogiou a sua retórica e lhe disse que do ponto de vista técnico talvez até estivesse com a razão, mas que naquele momento ele ainda não estava julgando o mérito da ação, e que o objetivo da liminar era preservar a vida de um ser humano. Mostrou ao advogado do hospital que havia nos autos do processo uma cópia do contrato do plano de saúde indicando que, pelo menos no momento em que fora assinado, o hospital pertencia a sua rede credenciada. Havia também um panfleto do hospital informando que atendia aquele convênio. O juiz perguntou a José Augusto se ele sabia se os consumidores do plano de saúde haviam sido comunicados da desvinculação do hospital. José Augusto acenou negativamente com a cabeça.

            Diante disso, o magistrado afirmou que não iria reconsiderar a ordem e, em seguida, discursou longamente sobre a ganância dos empresários da medicina privada, bem como a respeito da precariedade dos serviços públicos e acerca do descaso das autoridades na área da saúde.  Finalmente, e de maneira inusitada, sentenciou ao advogado que se ele recorresse, conseguisse suspender a liminar e a criança morresse, que ele iria para o inferno, porque mais importante do que a lei dos homens seria a lei de Deus. Em contrapartida, deferiu o pedido de citação do Estado e mandou intimar o Secretário de Saúde com urgência para cumprir a decisão em conjunto com o hospital particular. José Augusto sorriu, agradeceu ironicamente o sermão e retornou a sua sala satisfeito.

            Ao chegar, redigiu um recurso requerendo ao Tribunal a suspensão da determinação em relação ao hospital e foi rapidamente protocolizá-lo.  Assim que o agravo foi distribuído a um desembargador, dirigiu-se a seu gabinete, explicou-lhe as particularidades do caso, enfatizando a ordem ter sido estendida à Secretaria Estadual de Saúde. Ao término, a liminar foi suspensa em relação a seu cliente, mas mantida quanto ao governo.

            Revertida a situação e preservada a sua reputação profissional, José Augusto designou um outro advogado para o caso, parou de acompanhá-lo pessoalmente e ficou sabendo que cerca de dois meses depois a criança veio a falecer, como diagnosticara o médico empresário.  Até hoje ele não sabe dizer ao certo a causa do óbito, assim como se aquela medida fora cumprida pela rede pública de saúde, nem se isso influenciou na morte da neném. Sabe apenas que fez o que julgava que qualquer advogado faria em seu lugar. Não se sente culpado, mas, por via das dúvidas, pede a Deus todas as noites que não o mande para o quinto dos infernos, argumentando com o Senhor em suas preces que, afinal, lá já há advogados demais.
 


quinta-feira, 25 de julho de 2013

Sensata loucura (pensamento vago e mutável)


       
          Santo desequilibrado, diabo ponderado, homem comum em um lugar intermediário entre o céu e o inferno. A loucura é o meu bem, o mal a lucidez.
           Enquanto aquela revela a essência descalibrada mas sincera que me habita, com a outra dissimulo e transformo desatino em prumo, levando com grande naturalidade a sociedade a crer que me comporto com sensatez.
           Anjo caído, demônio redimido, pessoa vulgar em um mundo planetário entre o sol e as estrelas. A demência e o juízo se completam e temperam em mim uma agridoce estupidez.
             E a mistura disso tudo traduz minha mente, que mente quando admite as burrices e os pecados, mas diz que não se arrepende. Se arrepende sim, por cada carne ferida, alheia e própria, chora baixinho e pede perdão de uma só vez.

Sensata loucura (versão quase original)

         

         Anjo desequilibrado, demônio sensato, homem comum no mundo intermediário entre o céu e o inferno. A loucura é o meu bem, a sensatez o meu mal.
          Enquanto aquela revela a essência da minha alma pequena, a outra dissimula a grande banalidade daquilo que a sociedade chama de minha lucidez.
          Anjo caído, demônio redimido, pessoa vulgar em um mundo planetário entre o sol e as estrelas. A demência e o juízo se completam e temperam a minha estupidez.
          E a mistura disso tudo traduz minha mente, que mente quando admite os pecados, mas diz que não se arrepende. Se arrepende sim, chora baixinho e pede perdão de uma só vez.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Poema de corpo e vida

Na manhã a brasa aquece
a trova que a vida canta.
Orgulhoso o corpo cresce,
enquanto o tempo encanta.

Ferve a chama da tarde
o soneto do tempo louco.
Inquieta a vida arde,
tornando o corpo pouco.

À noite o fogo acalma
o poema livre da vida.
Pois corpo agora é alma,
na eternidade provida.

Corpo no tempo some.
Vida nem fogo consome.



Obs.: antes que algum poeta de verdade me critique, explico que apenas brinquei de organizar palavras em pseuda forma de soneto inglês, sem preocupação com regras de métrica, rima e ritmo.


segunda-feira, 8 de julho de 2013

British Rock

     
   
         Acho o Rock inglês absolutamente fantástico, qualquer que seja o estilo, e não acredito ser possível dizer entre The Beatles, Rolling Stones, The Who, Led Zeppelin, Sex Pistols, Queen, Pink Floyd e outros quem é o melhor, até porque os estilos não são idênticos.

      No entanto, para mim os Beatles sempre serão a minha assumida preferência, não pela qualidade técnica do som, mas por motivo puramente subjetivo. Acho que esse carinho se dá porque ela foi a primeira banda de rock inglês que descobri. Para dizer a verdade, até 1983 era a única cuja obra eu realmente conhecia. Escutava músicas de outros grupos ingleses, americanos ou de outros países no rádio, mas na maioria das vezes sequer sabia de quem eram. 

    Naquele ano, apesar de a preferência não sofrer abalo, meus parâmetros musicais se transformaram. Um colega me emprestou um álbum duplo de vinil chamado The Wall e conheci, então aos quatorze anos de idade, o rock progressivo do Pink Floyd. Meu irmão, com treze, também ouviu e adorou. Na mesma semana ele comprou The Dark Side of the Moon, Wish You Were Here e Aton Heart Mother. Depois disso, conheci muitas outras bandas inglesas e de várias nacionalidades, como a canadense Rush.

      Nunca mais parei de ouvir Pink Floyd e uma música especialmente vem me acompanhando por esses 30 anos como se tivesse sido tatuada em minha alma e se tornado parte do meu próprio ser, Wish you were here.  Não sei explicar a razão, a não ser o fato de gostar da letra, da melodia e do refinado instrumental.





sexta-feira, 5 de julho de 2013

Eu, Arthur e o Caviar

     
     
       Senti um leve toque em meu rosto. Abri os olhos e não vi nada, estava tudo escuro. Voltei a dormir. Em seguida, veio um apertão no nariz acompanhado de uma vozinha dizendo: - Vamo papai! Vamo papai! Abri novamente os olhos e, aos poucos, consegui ver uma criaturinha minúscula com chupeta na boca e cabelos loiros embaralhados tentando sacudir a minha cabeça. - Vamos aonde, Arthur? Perguntei. - Sala, Mickey, mamá papai!

      Olhei o relógio e ainda eram três e meia da madruga. Peguei o moleque no colo e fui para a sala. Liguei a TV, coloquei um DVD e fui para a cozinha fazer mamadeira. Fiz o mamá e abri a geladeira procurando algo para eu comer. De início, nada me entusiasmou, mas um potinho me chamou a atenção. Era caviar legítimo trazido na véspera pelo meu cunhado de uma viagem à Rússia. Pensei: - A esta hora este troço vai embrulhar meu estômago. Ignorei o pensamento.

       Peguei a mamadeira, as ovas de esturjão, um saco de torradas e fui para a sala. Ajeitei Arthur em meu colo e lhe dei a mamadeira. Fiquei observando meu bichinho bebendo aquele leite puro e me lembrei de que quando criança adorava também. Hoje não suporto. Atualmente, leite só com muito Toddy.

      Após terminar, satisfeito se esparramou no sofá ao meu lado. Aproveitei e abri o pote de caviar. Com uma pequena colher, coloquei uma porção sobre uma torrada. Cheiro sutil, sabor levemente salgado, textura gelatinosa mas firme. Estava delicioso e meu estômago aceitou bem! Na hora me lembrei de que até a adolescência repudiava a ideia de comer ovas ou peixe cru. Contudo, recordei-me de que um dia meu pai trouxe caviar de uma viagem e eu experimentei, estranhei no início, mas depois gostei. Hoje gosto de caviar e adoro sashimi de salmão, atum e haddock.

      Curioso, Arthur se levantou e apontou para iguaria russa dizendo: - Bala papai. Qué bala papai! Bem, sei que não é bala, mas a vida é experiência...  Inseri uma colherzinha e meu pequeno companheiro sorridente fechou a boca, bochechou um pouco e fez cara de espanto. Óbvio que ele estava esperando alguma coisa doce e se deparou com algo salgado com sabor de maresia. - brruuuhhh.... Cuspiu tudo e disse: - Eca papai, eca papai, qué não, qué não.

      Depois da satisfação do leite quentinho, da decepção das balinhas pretas com gosto de aquário e de assistir ao mesmo desenho por três horas dando gargalhadas, Arthur se deitou no sofá e dormiu. Enquanto isso saboreei mais um pouco de caviar e fiquei pensando em como os nossos gostos e prazeres se transformam ao longo da vida. Dormi às seis e meia e acordei às oito, mas fui trabalhar feliz da vida por ter vivenciado uma madrugada bem inusitada, daquelas das quais a gente jamais se esquece.