Enquanto
aguardava resposta, viu surgir em sua mente a história daquela criança como se
fosse um filme. Imaginou a dor que a mãe sentiu quando o médico lhe
contara no dia da primeira ultrassonografia que sua filha era portadora de uma
grave síndrome e que provavelmente não nasceria viva ou, se nascesse,
certamente não passaria do primeiro ano de vida.
Nesse
momento a secretária ligou e lhe avisou que seria recebido em duas horas.
O filme prosseguiu e viu em detalhes o drama de uma gravidez árdua, um parto
complicado e a luta incansável pela vida sendo travada e vencida pela pequena a
cada crise convulsiva, a cada parada cardiorrespiratória, a cada dia, ou
melhor, a cada minuto.
Após
um mês de internação hospitalar em UTI neonatal, mesmo não havendo previsão
contratual, a operadora do plano de saúde ofereceu a sua mãe uma unidade
de tratamento intensivo domiciliar. A empresa não fez esse
acordo por espírito humanitário, mas sim porque essa solução lhe era
financeiramente mais vantajosa. O médico da menina autorizou e a proposta
foi aceita. Finalmente a neném chegava ao lar.
Olhou
o relógio, já estava na hora de subir ao andar da diretoria. Assim que
entrou, o diretor lhe sorriu, fez um gesto para que se sentasse e lhe
perguntou:
- Então, doutor José Augusto, o que houve?
Em resposta, o advogado lhe entregou o mandado. O médico
o leu rapidamente em silêncio, refletiu e indagou:
- Veja bem doutor, esse serviço foi assumido pela
operadora de planos de saúde, no entanto nós já não pertencemos mais a sua rede
credenciada. Por que o juiz determinou que o nosso hospital mantenha em
funcionamento esse serviço de home care? Nós não temos obrigação
contratual alguma nesse caso.
O advogado explicou que aquela operadora estava
praticamente falida, não pagava suas dívidas há meses e que seus sócios
estavam foragidos em razão de terem sido denunciados pelo ministério público
por crimes financeiros. Salientou que aqueles fatos fizeram com que a
empresa subcontratada pela operadora para manter o home care funcionando informasse
à mãe da criança que cessaria os serviços por falta de pagamento em uma semana.
José Augusto esclareceu ainda que o advogado da família
concluiu que seria mais eficaz ajuizar uma ação diretamente contra um hospital
credenciado do que processar o plano de saúde, até porque ele não sabia,
ou fingiu não saber, que no momento do ajuizamento da ação o hospital já havia
se descredenciado. Disse ainda que o juiz, por também não saber dessa
particularidade, concordou e concedeu a liminar, determinando que o hospital
adotasse todas as medidas necessárias à manutenção do serviço e à
preservação da vida da paciente em quarenta e oito horas.
Ao término da narrativa, o diretor impacientemente se
ajeitou em sua cadeira, olhou pela janela por alguns segundos e falou sem
hesitar:
- Mas eu não concordo com essa decisão, ela é
flagrantemente equivocada e o senhor sabe disso bem melhor do que eu. Nosso
hospital não pertence mais à rede credenciada daquela operadora. Se o
plano de saúde quebrou, o paciente deve contratar outro ou buscar
assistência médica na rede pública. Doutor José, eu não vou cumprir essa ordem
nem que um raio caia na minha cabeça!
- Bem, doutor, tecnicamente o senhor pode estar certo,
contudo existe uma decisão judicial e se não a cumprir responderá por
crime de desobediência. Há também o risco de morte para a criança e, se isso
acontecer, o senhor será acusado de homicídio.
- Doutor José, não vou cumprir a ordem, não quero que se
forme precedente nesse sentido. Essa decisão é absurda. Você é o chefe do
nosso departamento jurídico, recorra e arrume um jeito de derrubar essa
liminar. Antes de ser empresário eu sou médico e não me impressiono com a
morte. Se essa menina morrer, paciência, todo mundo morre um dia, e pelo quadro
lhe digo que ela não viverá muito. Por favor, seja profissional, não
se permita sensibilizar pelo estado da menina. Aja rápido para que
as coisas não se compliquem.
José Augusto
sentiu um gosto amargo ao ouvir o médico lhe dizer que não se importava
com a morte de uma criança. Porém a acusação de estar deixando o sentimento
atrapalhar o profissionalismo o perturbou muito mais. Um desconforto duplo
tomou conta de si. Pouco na consciência, muito no orgulho.
Terminada a reunião, o advogado voltou a sua sala para
definir uma estratégia de atuação processual. Considerou que naquelas
circunstâncias seria muito difícil conseguir convencer um desembargador a
suspender a decisão. Estava claro que seria necessário criar uma
alternativa, a qual viabilizasse a cassação da ordem sem que a criança ficasse
sob risco de morte. De qualquer modo, ele precisava tentar suspendê-la
antes de se esgotar o prazo.
Durante o final daquela tarde, ele fez uma petição
requerendo ao juiz a reconsideração da sua liminar ou, caso não a
reconsiderasse, que mandasse citar o Estado para ingressar como réu na ação,
sob a alegação de que, independentemente da responsabilidade das empresas
privadas, o Poder Público também tinha o dever constitucional de prestar o
serviço de saúde indispensável à preservação da vida daquela menina.
No dia seguinte, José Augusto foi ao Fórum logo na
primeira hora do expediente. O magistrado o recebeu e o ouviu
atentamente. Concluída a explanação sobre o caso, o juiz elogiou a sua
retórica e lhe disse que do ponto de vista técnico talvez até estivesse com a
razão, mas que naquele momento ele ainda não estava julgando o mérito da ação,
e que o objetivo da liminar era preservar a vida de um ser humano. Mostrou ao
advogado do hospital que havia nos autos do processo uma cópia do contrato do
plano de saúde indicando que, pelo menos no momento em que fora assinado, o
hospital pertencia a sua rede credenciada. Havia também um panfleto do
hospital informando que atendia aquele convênio. O juiz perguntou a José
Augusto se ele sabia se os consumidores do plano de saúde haviam sido
comunicados da desvinculação do hospital. José Augusto acenou
negativamente com a cabeça.
Diante disso, o magistrado afirmou que não iria
reconsiderar a ordem e, em seguida, discursou longamente sobre a ganância
dos empresários da medicina privada, bem como a respeito da precariedade dos
serviços públicos e acerca do descaso das autoridades na área da saúde.
Finalmente, e de maneira inusitada, sentenciou ao advogado que se ele
recorresse, conseguisse suspender a liminar e a criança morresse, que ele iria
para o inferno, porque mais importante do que a lei dos homens seria a lei de
Deus. Em contrapartida, deferiu o pedido de citação do Estado e mandou intimar
o Secretário de Saúde com urgência para cumprir a decisão em conjunto com o
hospital particular. José Augusto sorriu, agradeceu ironicamente o
sermão e retornou a sua sala satisfeito.
Ao chegar, redigiu um recurso requerendo ao Tribunal
a suspensão da determinação em relação ao hospital e foi rapidamente
protocolizá-lo. Assim que o agravo foi distribuído a um desembargador,
dirigiu-se a seu gabinete, explicou-lhe as particularidades do
caso, enfatizando a ordem ter sido estendida à Secretaria Estadual de
Saúde. Ao término, a liminar foi suspensa em relação a seu
cliente, mas mantida quanto ao governo.
Revertida a situação e preservada a sua
reputação profissional, José Augusto designou um outro advogado para o caso,
parou de acompanhá-lo pessoalmente e ficou sabendo que cerca de dois
meses depois a criança veio a falecer, como diagnosticara o médico
empresário. Até hoje ele não sabe dizer ao certo a causa do óbito, assim
como se aquela medida fora cumprida pela rede pública de saúde, nem se isso
influenciou na morte da neném. Sabe apenas que fez o que julgava que qualquer
advogado faria em seu lugar. Não se sente culpado, mas, por via das
dúvidas, pede a Deus todas as noites que não o mande para o quinto
dos infernos, argumentando com o Senhor em suas preces que, afinal, lá já
há advogados demais.