terça-feira, 20 de agosto de 2013

Os sentidos da vida (pequeno conto urbano)

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            Naquela manhã o despertador ligou sintonizado em uma rádio de música clássica, em que tocava a Primavera de Vivaldi. Cortina fechada, luz apagada, sem abrir os olhos Paulo se levantou como se estivesse acordando de um longo inverno.  A melodia o lembrou de que adorava os sons da vida e lhe deu a certeza de que seria um dia lindo.

            Tomou banho, se arrumou, fez café, colocou na mochila a muda de roupa para a musculação após o expediente, o celular, alguns outros objetos e partiu para o trabalho.

            Alguns quarteirões perto dali ela abriu os olhos. Desde criança amava ser acordada daquele jeito: o sol acariciando seu rosto e lhe trazendo logo cedo as cores do mundo.

            No ônibus, Paulo se sentou no lugar de sempre, junto à janela. O motorista puxou papo:

            - E aí Paulo, tudo bem?

            - Tudo! E contigo Luiz?

            - Também, mas o que me mata é esse trânsito murrinha.

            - Pra mim tá ótimo, assim vou curtindo a paisagem - os dois riram e seguiram em silêncio.

            Dois pontos adiante ela entrou, caminhou até o banco próximo ao motorista e se sentou ao lado de Paulo. Ele virou seu rosto em direção a ela. A moça fixou os olhos nos lábios dele, achou-os lindos e manteve o olhar. O rapaz não se conteve e disse baixinho: - nossa, que perfume! A moça gostou do que viu, olhou para baixo e discretamente sorriu.

            Alguns minutos depois ela percebeu Paulo girando a cabeça em direção à janela. Examinou-o de cima a baixo. Cabelo desarrumado mas bonito, ombros largos e braços fortes, óculos de sol fora de moda e meias claras com calça escura; nada que uma garota de bom gosto não pudesse resolver. Paulo se virou novamente para frente, e ela, por reflexo, disfarçou.  Embora tenha sido bem discreta, de alguma forma ele pressentiu. Desconhece a razão, mas sempre sabe quando está sendo observado. Uma vez a vó lhe disse que ele tinha os sentidos apurados.

            Ainda provocado por aquele cheiro de mulher, Paulo roçou levemente seu braço no dela, aguardando, no mínimo, um afastamento. Ao contrário, ela manteve o braço e encostou sua coxa na dele. Por não esperar por isso, seu coração de marinheiro de primeira viagem disparou. Ele respirou fundo e tentou parecer calmo. A garota colocou a mão levemente sobre a perna dele.

            Apesar de ser um sujeito confiante, por alguns segundos se sentiu menino, meio perdido diante da novidade. Parecia que todos os seus sentidos tinham fugido de medo, apenas o tato permanecia ali. Mesmo inseguro, pôs sua mão sobre a dela. Achou-a delicada, com pele suave e bem jovem. Continuou acariciando a mão direita da menina.  Não havia aliança de noivado, apenas um anel em forma de flor. Por certo também não haveria aliança na esquerda - deduziu.  Deslizou os dedos até o antebraço e o encontrou arrepiado. De repente a mão e a perna de Paulo ficaram vazias. Ele cruzou os braços à frente de seu tronco e permaneceu em silêncio, quieto.

            Na segunda parada ela colocou algo no bolso da camisa dele, levantou-se e desceu. Curioso ele foi conferir. Era um pequeno pedaço de papel. Desdobrou-o e, com as pontas do polegar e do indicador em pinça, enxergou no centro um recorte em forma de coração. Ele ficou de pé, aproximou-se do motorista e perguntou:

            - Luiz, você viu onde aquela menina saltou?

            - No Instituto de Surdos.

            - Você a conhece?

            - Sim, garota legal. Pega este ônibus há anos. Era aluna, agora é professora.

            - Que bom, pertinho do meu trabalho. Vê pra mim se tem algo escrito aqui.

            - Tem sim: "quero ser a luz da tua vida. Te encontro aqui amanhã no mesmo horário, com o mesmo perfume e o mesmo anel. Beijos, Carlinha". Aí cara, se deu bem, maior gata!

            - Valeu... Já é o meu ponto?

            - É. Pode descer, mas cuidado que eu fiquei uns dois passos longe do meio fio.

            - Tchau, até amanhã!
      

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