sábado, 14 de setembro de 2013

O sumiço do pato (pequeno conto familiar)

         



         Ele passou a semana inteira louco de vontade de escrever algo que não fosse jurídico. Não desgosta da redação técnica da advocacia; ao contrário, gosta bastante, sobretudo da liberdade e das possibilidades da argumentação baseada na lógica do razoável.  Mas não era disso que estava desejoso; queria gritar e pôr para fora alguma coisa entalada em sua alma.

         A manhã de sábado chegou e finalmente poderia dar asas àquele impulso.  Há quem diga que essa sua vontade é existencial.  Bem, como simples narrador deste conto não sei, mas quem o diz o conhece, tem suas razões, portanto deve estar certo.

         Independente da sua natureza, ele despertou ainda com aquele desejo.  Foi à cozinha, preparou mamadeiras para seus dois filhos, fez o café e acordou a esposa.  Da varanda do apartamento viu o dia nublado, chuvoso, e concluiu: nada de clube, piscina no play ou pracinha; acho que vai dar para ficar em casa escrevendo, se as crianças deixarem!

         Depois desse preâmbulo matinal, ligou o computador, encarou por alguns minutos a folha alva e pensou: uma página em branco é a maior obra da literatura universal. Nela há tudo, basta imaginar. Existem romances, novelas, contos, fábulas, crônicas, poemas, biografias, ficções, o passado, o presente, o futuro e tudo ao mesmo tempo.

         Mas apesar da filosofia de lugar comum, olhou, olhou, olhou e não encontrou história alguma naquela tela carente de tintas. Nada de frases; sequer tropeçou em uma mísera letra.  Ficou ali pouco mais de uma hora e nada. Desligou o computador e foi para a varanda.  Enquanto o olhar vagueava por onde ele nem sabia, sua esposa lhe perguntou:

         - Amor, vamos almoçar em um restaurante ou você quer que eu faça comida?

         - Acho que não estou com vontade de sair.  O que você prefere?

            - Tanto faz.

         - Então vamos comer aqui mesmo.  Já almoço em restaurante a semana toda...

         - Tudo bem. Mas você pode ir ao mercado comprar alguma coisa?

         - Posso sim. Quer massa?

         - Hunhum...

         No mercado, pegou dois pacotes de capeletti, uma caixa de molho de tomate, um saquinho de queijo ralado; pôs tudo na cesta e foi à seção de bebidas importadas.  Escolheu um carménère chileno; pagou as compras e voltou para casa.

         Assim que terminou o almoço, colocou os pratos na pia e deixou a garrafa vazia na lixeira do corredor do andar, para não correr o risco de as crianças a quebrarem.  Quando retornou, viu a esposa e a filha se arrumando:

         - Ué, vocês vão sair?

         - Vamos ao shopping trocar essas roupinhas que ela ganhou. Você pode ficar com o Arthur?

         - Posso, mas, por favor, não demorem muito...

         - No final da tarde a gente volta. Beijo!

         Mãe e filha saíram e ele falou ao filho:

         - Meu amigão, eu sei que você só tem um ano e onze meses, mas vê se colabora. Tá?!

         - Qué vê Mickey, papai!

         O pai ligou o DVD e se sentou no sofá, enquanto o filho se ajeitou no chão mesmo.  Em minutos os dois já estavam deitados, cada um em seu lugar, aquele com o olhar pesado de vinho, o outro rindo solto.  Entre pestanejadas demoradas, o pai começou a refletir: passei a semana inteira com vontade, mas agora não sei sobre o que escrever.  Acho que vou tentar um poema de conflito entre o corpo e a alma. Melhor não, mês passado fiz um inspirado em Cruz e Souza e minha mãe perguntou a meu irmão se eu estava pensando em me matar.

         Descartou a ideia, abriu os olhos e viu o Arthur sentado ali, em frente ao sofá.  Cochilou um pouco e imaginou escrever uma crônica acerca da liberdade de orientação sexual e dos novos arranjos familiares. Logo desistiu do assunto, afinal de contas não possuía conhecimento suficiente.

         Uns tantos minutos após, abriu os olhos apreensivo, mas logo avistou o menino em pé ao lado do sofá.  Relaxou e, de olhos fechados, se viu escrevendo um conto a respeito de um homem casado, pai de filhos pequenos, possivelmente atravessando a chamada crise dos quarenta.  Gostou do tema e pensou logo em uma frase: ele ainda não é velho, longe disso, mas por outro lado já não é tão novo quanto gostaria.

         No entanto, percebeu que além disso teria que falar sobre o desgaste natural da vida em comum, em razão da rotina, dos filhos, do trabalho e de muitas outras coisas por que passam casais da classe média brasileira nessa fase da vida.  Compreendeu, também, que o tema poderia ser escasso de passagens interessantes, capazes de prender a atenção do leitor; ou então, levar a discussões interiores conflituosas e áridas demais.  A possibilidade de a esposa ler e não acreditar no caráter meramente ficcional do texto o desestimulou, porque esse fato poderia suscitar aborrecimento conjugal.

         Durante o pensamento, ou sonho – nem ele sabia ao certo -, ouviu um barulho e levantou-se sobressaltado, chamando em voz alta:

         - Arthur, Arthur, onde você está? Venha aqui.

         Imediatamente ouviu os passinhos apressados do garoto se aproximando, vindo pelo corredor do apartamento.  Quando chegou, o pai o viu com os cabelos molhados para trás, e as mangas compridas da camisa ensopadas até os cotovelos.  A barriga também estava encharcada.  Mas o que mais o intrigou foi uma coisa verde empastada pelo rosto.  Parecia um creme feito de criptonita.

         O pai foi até o banheiro e encontrou a tampa do vaso levantada e o chão molhado.  Por dentro do sanitário a louça estava suja daquela substância cor de clorofila.  Ainda meio atordoado pelo vinho ele se perguntou: caramba, o que é isso?  Logo em seguida ouviu a porta da sala se abrindo e pensou: graças a Deus, elas chegaram.

         Diante da cena, a mãe perguntou:

         - O que houve? Você estava dormindo?!

         - Acho que ele se lavou no vaso, mas não estou encontrando o sabonete.

         - Sabonete que nada; isso é Pato Purific, pedra sanitária adesiva. Será que ele comeu?

         - Não sei, mas creio que não. Se ele pôs na boca deve ter cuspido, porque o gosto deve ser forte, horrível.  Além disso, ele não está vomitando nem nada. Está é rindo. Olha só a cara de safado...

2 comentários:

Unknown disse...

mas que aprontadorzinho!

Otavio Pilla disse...

Ele apronta bastante, Chang, mas é bonzinho!
Bjs

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